Prezados,
tomei conhecimento de texto escrito por Eduardo Cabette sobre a natureza
jurídica do novo delito de embriaguez ao volante (art. 306 com redação dada
pela Lei n. 12.760/2012). Segundo a sua doutrina, o denominado “crime de perigo
abstrato de perigosidade real” é uma falácia. Gostaria
de expor algumas considerações, pois trabalhei essa teoria em meu último livro.
O
autor explica que quanto à exigência de concreção do perigo há três modalidades
de delito: de perigo abstrato, de perigo concreto e de perigo abstrato de
perigosidade real. Sua lição é incorreta. Do ponto de vista analítico há uma
dicotomia clássica – e que se estende aos dias atuais – em relação à relevância
do perigo para a consumação das infrações. Assim, os crimes de perigo podem ser
de perigo abstrato ou de perigo concreto. A suposta terceira modalidade não
existe de forma autônoma. É uma derivação mais específica do delito de perigo
abstrato, descrita em seu texto com “criação mirabolante”, “fórmula
pseudocientífica”, “besteira enfeitada com ares de sapiência”, “categoria dos malsinados”,
etc., apresentada por “charlatões e prestidigitados intelectuais”.
É mais ou menos assim. O autor
considera as teses da periculosidade como elemento basilar dos crimes de perigo
abstrato elaboradas por Silva Sánchez, Marina Lluch e Vicente Martínez, por
exemplo, falaciosas e seus idealizadores como embusteiros. Também poderia citar
autores portugueses, italianos ou alemães que seguem essa temática, mas a seguir a bibliografia de seu
texto, certamente o autor não os conheceria. Igualmente não deve saber que Silva
Sánchez representa um marco temporal entre o passado e o presente no Direito Penal.
Entende-se, pois o autor não deve acompanhar esse extraordinário penalista.
Já no final de seu texto apresenta
outras classes de delitos de perigo abstrato, porém agora com tom mais moderado,
embora todas elas, conjuntamente com a classificação combatida, sejam propostas
para legitimar os delitos de perigo abstrato. Ou seja, como a tese da
perigosidade real dos delitos de perigo abstrato parece incomodá-lo, buscou
criticar de maneira veemente, valendo-se de expressões deselegantes e
impróprias. Depois ventilou sua própria classificação (delito de perigo abstrato como de perigo notório).
O autor entende que a classificação “crime
de perigo abstrato de perigosidade real” não passa de uma alteração do nome
daquilo que é conhecido como “crime de perigo comum” e que ela decorre de uma
confusão doutrinária que equipara os delitos de perigo concreto e abstrato com
os delitos de perigo coletivo e individual. Causa-me surpresa que é o autor que
constrói essa ideia e é o autor que afirma que muitos não compreendem as
independentes dicotomias. Porém, o autor não apresentou nenhum nome para
corroborar o que enfatiza. Penso que seria fácil para o autor nominar os penalistas
que partem da suposta premissa errônea destacada em seu texto.
Valeu-se dos nomes de Hungria, Bruno
e Noronha para esclarecer o que ninguém na doutrina moderna propõe. A
classificação “crime de perigo abstrato de perigosidade real” é uma proposta
para legitimar a infração de embriaguez ao volante considerada um delito de
perigo abstrato tendo em vista que muitos penalistas, erroneamente, entendem
que esses delitos são – por si sós – inconstitucionais. Quem a propõe não faz
relação direta com os delitos de perigo comum ou individual como o autor diz. Aliás,
repita-se, apenas o autor diz isso. Ademais, se a construção é aplicada
especialmente aos crimes considerados vagos, não significa que seus proponentes
confundam duas classificações diversas. Uma vez mais: somente o autor os acusa
dessa estupidez.
O autor deseja desconstituir a
doutrina de respeitados penalistas lembrando Capez e Damásio. Propõe o
argumento da autoridade, ao passo que outros propõem a autoridade do argumento.
E isso não significa acreditar que aquilo que vem depois é melhor do que o seu
precedente. Aliás, quando se deseja escrever sobre crimes de perigo, ao menos os
penalistas do Brasil que trabalham essa temática deveriam ser consultados, salvo
se o autor também os considera “charlatões”.
A doutrina combatida pelo autor tem
o fim de auxiliar os magistrados a refutar a caracterização dos delitos de
perigo abstrato como delitos de perigo presumido e, com isso, sua
inconstitucionalidade. O objetivo é auxiliar os magistrados a interpretar
evolutivamente o tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito, ou seja, para
que eles procedam a uma interpretação constitucionalmente orientada para
legitimar o direito de punir. O mesmo se passa com outras classes de perigo
abstrato quando referidas a distintos delitos previstos no Código Penal e em
leis especiais.
Requer-se dos magistrados, quanto ao
delito de embriaguez ao volante, uma análise restritiva, pois se não há ninguém
na rua ou nas imediações do veículo anormalmente dirigido pelo motorista sob a
influência do álcool ou das drogas, não há porque puni-lo. Usando a sua
nomenclatura: não há perigo notório. Agora, existindo pessoas ou carros no raio
de ação do automotor conduzido pelo agente sob a influência de álcool ou de
drogas, o perigo só é notório se a condução for anormal. Por isso sua tese não
é de todo correta e a terminologia “crimes de perigo abstrato como de
perigosidade real” é adequada, pois nesse segundo contexto, a análise dos
juízes deverá ser teleológica, porque a aferição da tipicidade não deverá
ocorrer unicamente pela descrição legislativa, sendo necessário precisar a
perigosidade da ação preposta e oposta à proteção dos bens jurídicos. É uma
exigência do tipo, que o autor e grande parte dos representantes do Ministério
Público vão insistir em negar.
Quando se desconhece as teses acadêmicas
apresentadas nas mais tradicionais escolas jurídicas sobre temas aqui
discutidos, geralmente o crítico as rechaça com expressões baratas como
“fórmulas pseudocientíficas” e adjetivações simplórias como “misteriosas”. É
mais ou menos assim: nunca comi o doce, mas já digo que é ruim. Ademais, quanto
a sua pergunta se as teses modernas deverão obrigar os acadêmicos a se
atualizarem, respondo afirmativamente, salvo se a opção deles for continuar
estudando os irmãos xifópagos ao invés de temas relacionados à sociedade de
risco. É fácil: enquanto o autor cita Flávio Barros eles podem estudar Ulrich
Beck.
É simples o conteúdo “dos crimes de
perigo abstrato como de perigosidade real” para explicar aos alunos, sejam
acadêmicos ou concurseiros. Trata-se de “delitos nos quais não se exige um
resultado de risco para um específico objeto de tutela, mas é exigida uma
conduta ex ante perigosa para o bem
jurídico, de forma que sua aplicação requer a constatação da perigosidade real
da conduta no caso concreto” (Marina Lluch). Por favor, não confunda caso
concreto com perigo concreto. Silva Sánchez, por exemplo, explica que a
perigosidade deve ser revelada como o injusto material dos delitos de perigo
abstrato e, assim, em uma perspectiva teleológica, deve-se acrescentar esse
elemento na descrição da conduta delitiva. Pierpaolo Bottini apresenta outros
penalistas que defendem essa construção.
O delito de embriaguez ao volante
como delito de perigo abstrato seria, assim, não um delito de desobediência
(inconstitucional, recordo), mas um delito de perigosidade real, devendo-se
apreciá-la sob uma ótima ex ante,
diferentemente dos delitos de perigo concreto, em que a situação do perigo se apresenta
ex post. Aliás, no seu texto há outro
engano: o perigo nem sempre é elemento expresso nos delitos de perigo concreto.
Consultar Giorgio Marinucci seria fundamental.
O que o autor entende por “ciência
oficial”? Aqueles a quem buscou apoio para sustentar sua crítica? Aliás, de
tanto citar autores sem prestígio, acaba por se autolesionar intelectualmente.
Explico sucintamente. Afirmou que “o crime de perigo abstrato como de
perigosidade real” é uma construção de categorias contrapostas. Claro que isso
é incorreto, pois já demonstrei a diferença entre um crime de perigo abstrato e
outro de perigo concreto. O autor insiste tratar-se de uma “quimera autofágica” ou
um “instituto jurídico esquizofrênico” e chega a defender que a preservação
dessa classificação fará com que o mesmo delito (art. 306) seja simultaneamente
de perigo concreto e abstrato. Ocorre que o autor é o único que conheço que defende
essa dupla classificação – que nenhum “charlatão” diz existir – para o delito
de embriaguez ao volante. Vou refrescar a memória com seus próprios textos.
No texto que enseja minha resposta,
em um dos inúmeros parágrafos, o autor disse: “ou bem um crime é de perigo
abstrato ou é de perigo real”. Lembrando que em linhas anteriores menciona que
o crime de perigo concreto também é denominado de crime de perigo real. Logo,
para deixar bem claro: “ou bem um crime é de perigo abstrato ou é de perigo
concreto”. Em outro texto, escrito no final do ano passado, quando já ventilava
sua errônea classificação de perigo notório, o autor fez alusão às duas últimas
leis: “conclui-se, portanto, que quando do vigor da Lei 11.705/08 o crime era
invariavelmente de perigo abstrato, mas sob a égide da nova Lei 12.760/12 ele é
de perigo abstrato no caso do artigo 306, § 1°, I e de perigo concreto no caso
do artigo 306, § 1°, II, CTB”. E
agora: não era um ou outro?
Um tipo penal é formado por um
preceito primário e outro secundário. O primeiro descreve a conduta proibida e
no segundo é cominada a sanção. A proibição é única: “conduzir veículo
automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool
ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Os dois incisos do
primeiro parágrafo do preceito se relacionam às formas de comprovação da
alcoolemia, como também o segundo parágrafo. Como o autor interpreta de modo
incorreto o próprio dispositivo, também não entende sua natureza jurídica. É o
quanto basta, pois estas eram as considerações que gostaria de apresentar ao autor.
Prof. Dr. Leonardo Schmitt de Bem