Quando pertencia ao Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados de São Paulo, tive oportunidade de lançar um parecer no qual demonstrava o descabimento de todos os advogados poderem usar o título de "doutor", coisa que vinha do Império, mais exatamente quando, em 11 de agosto de 1827, criaram-se os primeiros cursos jurídicos no país. De acordo com as leis da República, doutor é aquele que defende tese original perante banca autorizada a aprová-la, como diz a lei nº 9.394/96, dita Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A lei n° 8.906/94, que é o Estatuto da OAB, não repete o que vinha na lei imperial, que passou a ser incompatível com a legislação que rege a outorga de tal título, como é óbvio. Pura questão de hermenêutica. Ou de exegese, se quiseres.
Por falar nisso, já ouviu falar de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos? Não? Então procure no Google e você descobrirá quem foi ele e o que fez na vida. Dentre outras coisas, saberá que foi nomeado, aos 63 anos, Ministro do Supremo Tribunal Federal, graças a seu "notável saber jurídico" e sua "conduta ilibada".
Está bem, você já tem quarenta anos e nunca tinha lido a palavra ilibado. Nem ouvido. Talvez porque os hábitos atuais das pessoas não incluem mais a ilibação, que é o "ato ou efeito de ilibar". Mas a palavra notável você certamente conhece. Se arável é o terreno que dá para ser arado, comestível é aquilo que dá para ser comido, notável é aquilo que dá para ser notado. Uma gravidez de 8 meses é uma coisa notável. Livros jurídicos, artigos jurídicos, teses jurídicas são trabalhos que nos permitem notar se seu autor possui ou não "saber jurídico". De acordo, Nelson Jobim?
Carlos Maximiliano, aos 52 anos de idade, publicou Hermenêutica e Aplicação do Direito, obra de tal importância que até hoje, já na 19ª edição, é consultada por quem leva o Direito e o Poder Judiciário a sério. As edições que se seguiram à aposentadoria do autor trazem um capítulo final que é a reprodução do discurso por ele pronunciado quando se despediu do STF. Entre outras coisas, ele diz que, a partir de agora, voltará a gozar da vida social, que julgava algo incompatível com a relevância do cargo que até então ocupava. Sua conduta, antes, durante e depois foi, sem a menor dúvida, limpíssima. E seu saber jurídico pôde e pode ser apreciado dos trabalhos escritos que deixou.
Imaginemos que Carlos Maximiliano houvesse tentado por duas vezes ingressar na Magistratura por concurso. Reprovado, desistiu de uma terceira tentativa, quando, certamente, mais bem preparado, não teria tido dificuldade em ser aprovado, chegando, com o tempo, a desembargador, "como toda a gente", com a licença do Eça. Faltou-lhe coragem? Reconheceu seu despreparo? Descobriu não ser essa sua verdadeira vocação? Nunca saberemos, pois estamos no campo das conjecturas.
Digamos que, por motivos vários, não houvesse ele subscrito os lapidares pareceres que lavrou como Consultor-Geral da República e seu Procurador-Geral, cargo que ocupou até tornar-se Ministro do STF. Nem tivesse publicado seus Comentários à Constituição Brasileira de 1891, seu inigualável Direito das Sucessões ou seu conhecidíssimo estudo sobre a propriedade condominial. Alguém, sem trair o que dizem os dicionários, poderia dizer ter ele "notável saber jurídico"? Digamos mais: mesmo sem ter o chamado "notável saber jurídico", nem merecer o título de "doutor" pelas leis da República, nem o título de "mestre", nem o de "pós-doutorado" (lato ou stricto sensu), nem de especialização em coisa nenhuma, que diríamos se houvesse Carlos Maximiliano sido contratado para dar assistência a algum governo estadual ou municipal, durante um ano, recebendo, por mês, valor correspondente a 140% daquilo que viria a receber no Supremo Tribunal Federal, mesmo tendo o tal Estado ou o tal Município um corpo de advogados que são remunerados exatamente para defendê-lo? No caso, o serviço a ser prestado por Carlos Maximiliano não se revestiria "de natureza singular, nem considerados os serviços em si, nem considerado o seu prestador, de quem não se requeria notória especialização, visto tratar-se de demandas com temática rotineira", como registraria o juiz que, eventualmente, viesse a julgar ilegal aquela hipotética contratação.
Quem dará a resposta a tais indagações não serei eu. Deixo-a a cargo do Superior Tribunal de Justiça, intérprete máximo das leis federais, como sabe qualquer Advogado-geral da União:
"Pode a Administração Pública, excepcional e motivadamente, mesmo quando conta com consultoria jurídica própria, contratar advogados. Mas, para fazê-lo, precisa licitar, exceto quando notável o saber jurídico do Advogado e absolutamente singular o serviço a ser prestado. Quanto a este último requisito, o que se observa in casu é que a Prefeitura de Itatiba buscou singularidade no atacado, como forma de disfarçar a terceirização em bloco de atividades que são próprias e bem podem ser executadas pelos Advogados que integram, com vínculo público, a Administração. Já no que tange ao primeiro requisito, cabe lembrar que, em Direito, notória especialização é aquela de caráter absolutamente extraordinário e incontestável. Ela fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no ápice de sua carreira e do reconhecimento, espontâneo, do mundo jurídico, mesmo que regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela publicação de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio". É o que se lê no Recurso Especial n° 488.842/SP (2002/0163048-3), relator o Ministro Castro Meira.
A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, autor do livro "Justiça & Caos" (clique aqui). Conheça também o blog do colunista clicando aqui.
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