Vamos aproveitar essa postagem para discorrer algumas linhas sobre o princípio da lesividade. Com isso já comentamos sentença prolatada pelo Dr. Alexandre Morais da Rosa em fato que, em tese, o Promotor de Justiça entendeu configurar o crime do art. 14 da Lei n. 10.826/03. Maiores destalhes sobre o ocorrido, bem como a fundamentação da decisão, vide o blog do magistrado (www.alexandremoraisdarosa.blogspot.com/).
Não obstante a lesividade/alteridade/ofensividade constituir princípio prévio à intervenção legislativa, por vezes o nosso legislador é impaciente. Ele acaba por antecipar à criminalização de condutas humanas anteriormente à própria lesão ao bem jurídico, ou ainda que este não seja exposto a risco relevante. Daí a necessidade do intérprete restringir o ímpeto daquele e afastar a aplicação da pena a condutas que não afetam um bem jurídico, ou seja, de reafirmar o princípio da lesividade que fora desrespeitado.
Não obstante a lesividade/alteridade/ofensividade constituir princípio prévio à intervenção legislativa, por vezes o nosso legislador é impaciente. Ele acaba por antecipar à criminalização de condutas humanas anteriormente à própria lesão ao bem jurídico, ou ainda que este não seja exposto a risco relevante. Daí a necessidade do intérprete restringir o ímpeto daquele e afastar a aplicação da pena a condutas que não afetam um bem jurídico, ou seja, de reafirmar o princípio da lesividade que fora desrespeitado.
Mas disso decorre um enorme problema. Existe uma realidade no Poder Judiciário que é desconhecida de quase todos: os magistrados que entendem e estudam o direito penal e aqueles que nada sabem – a maioria – e fazem questão de enaltecer velhas doutrinas. Em síntese: existe um Judiciário sério; outro alienado. Mas felizmente no grupo inicial, não raras vezes encontramos cumplicidade da Magistratura para com o Magistério da qual resultam boas conseqüências, embora indesejadas por seus superiores. É o caso que propomos comentar.
O intérprete absolveu o agente do crime do art. 14 da Lei n. 10.826/03 que, no caso concreto, fora flagrado numa blitz policial com várias munições no interior do veículo, mas sem nenhuma arma, por entender que esta infração – que é de perigo abstrato – ofende o princípio da lesividade. O interessante da decisão é que a fundamentação não se limitou à comprovação do porque o agente portava as munições apreendidas, uma vez que este não se desincumbiu do ônus de comprovar o porte legítimo. Foi além, porque a “matéria de fundo” é muito relevante, sendo que o julgador procurou responder o seguinte questionamento: o perigo que não é elemento do tipo, mas mera motivação do legislador é capaz de legitimar uma punição? Ou de forma mais simples: é suficiente uma presunção do perigo ao bem jurídico? Com extensa citação de autores respeitados no direito penal e não meros marqueteiros, concluiu com apoio em Roxin, que “a conduta que não causa risco significativo ao bem jurídico é atípica, pois [...] imputar a alguém a responsabilidade penal implica criação de um risco (relevante) não permitido em que haja tanto o desvalor da conduta como do resultado [...]”.
O que destacamos no início o mesmo magistrado enfocou na decisão, ou seja, cabe ao julgador ponderar a aplicação do tipo penal e, diante de situação onde inexista lesividade, não admitir a imposição de pena ao agente, pois, que perigo um projétil, por si só, oferece quando ausente uma arma de fogo? Por certo haverá quem assim se pronuncie: no primeiro dia porta-se a munição e no dia seguinte a arma desmuniciada – há precedente na Corte Suprema também entendendo pela atipicidade desta conduta – e, desta forma, o armamento estará completo em poucos dias. O argumento para esta intervenção é simples: isso não é um problema do Judiciário, mas sim de uma política incorreta, porquanto no Brasil é mais barato proibir do que ter uma polícia e, como efeito conseqüencial, uma fiscalização eficiente. Numa analogia com a educação: seria o mesmo que investir milhões de reais no ensino superior e abandonar completamente o ensino básico e fundamental. Fica a pergunta: do que adianta um computador por aluno se nem o nome sabe escrever com uma 'bic'?
No entanto também mencionamos que o Tribunal Catarinense (os superiores) posiciona-se contrário ao pronunciamento de seu integrante. O faz geralmente atrelado – senão em cópia integral (e quem dúvida basta ir ao mecanimos de busca e fazer rápida pesquisa) – dos pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça ou com a citação de autores que não analisam o direito penal sob a vertente constitucionalista. Por certo que esse procedimento é mais cômodo – e também burocrático, ressalte-se – pois assim não é necessário se debruçar, somente para ficar num único exemplo, sobre qual é o conceito de incolumidade pública?
No entanto também mencionamos que o Tribunal Catarinense (os superiores) posiciona-se contrário ao pronunciamento de seu integrante. O faz geralmente atrelado – senão em cópia integral (e quem dúvida basta ir ao mecanimos de busca e fazer rápida pesquisa) – dos pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça ou com a citação de autores que não analisam o direito penal sob a vertente constitucionalista. Por certo que esse procedimento é mais cômodo – e também burocrático, ressalte-se – pois assim não é necessário se debruçar, somente para ficar num único exemplo, sobre qual é o conceito de incolumidade pública?
A expressão é constantemente lembrada para fundamentar a punição do crime em destaque. Trata-se de “expressão sonora e vazia de conteúdo”, repetindo uma vez mais as palavras de Gustavo Quandt proferidas em debate virtual e neste blog já utilizadas, sem dúvida a homenagear uma postura ideal de bem jurídico com o propósito de legitimar o que nosso legislador entendeu desejável. Realizando pequeno estudo, com respaldo em autores respeitados, os desembargadores desta Corte de Justiça poderão concluir que o verdadeiro bem jurídico não é a segurança, como salientou, por exemplo, o Des. Jorge Mussi, atualmente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, em precedente (AC n. 07.000398-0, da Capital, j. 24/04/2007).
E por que não? Porque esta é “automaticamente violada quando a norma é desrespeitada”, devendo proteger, portanto, “realidades diversas do respeito à norma de comportamento”, como, por exemplo, a disponibilidade da vida ou da integridade física, “que podem ou não vir a ser afetadas pela violação da norma” [1]. Logo, o intérprete deve restringir a aplicação de tipos penais fundamentados numa acepção idealizada e não realista. Isso porque, “os tipos penais não podem estar fundamentados sobre bens jurídicos de abstração impalpável” [2], como é a incolumidade pública.
E por que não? Porque esta é “automaticamente violada quando a norma é desrespeitada”, devendo proteger, portanto, “realidades diversas do respeito à norma de comportamento”, como, por exemplo, a disponibilidade da vida ou da integridade física, “que podem ou não vir a ser afetadas pela violação da norma” [1]. Logo, o intérprete deve restringir a aplicação de tipos penais fundamentados numa acepção idealizada e não realista. Isso porque, “os tipos penais não podem estar fundamentados sobre bens jurídicos de abstração impalpável” [2], como é a incolumidade pública.
Obviamente a decisão do magistrado catarinense não é isolada. No corpo do julgado citou precedente da Corte do Rio Grande do Sul (Apelação criminal n. 700.189.188-54, rel. Des. Vladimir Giacomuzzi, j. 17/05/2007). Outra situação de “freio judicial” a “velocidade legislativa” retira-se de julgamento pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no qual a respectiva Câmara Criminal absolveu o agente da conduta criminosa do art. 28 da Lei n. 11.343/06 também aplicando o princípio da lesividade, pois a conduta não excedeu a pessoa do autor (Apelação criminal n. 01113563.3, de São José do Rio Pardo, rel. Des. José Henrique Rodrigues Torres, j. 31/03/2008).
Em relação ao último julgado também recomendamos a leitura. O que queremos destacar é que quando o legislador não é crítico em relação aos critérios de criminalização, ou seja, quando deixa de observar os princípios prévios à intervenção - subsidiariedade, fragmentariedade, lesividade e proporcionalidade - ele propicia mais elementos para que o magistrado possa decidir. No caso em tela, por exemplo, poder-se-ia questionar: qual é o dano social que decorre da ação do agente que consome particularmente pequena quantidade de droga? Por evidente nenhum.
Erroneamente costuma-se afirmar que o bem jurídico que se protege com a presente incriminação é a “saúde pública”. Acaso fosse a “saúde pública”, outra questão deveria ser analisada e que repetimos: é possível o tipo estar fundamentado sobre um bem jurídico de abstração impalpável? E outra vez responderemos negativamente. Neste caso “saúde pública” é bem imaginário. O que o legislador quis proteger, contudo não o fez, foi à integridade física daqueles que consomem drogas. Porém, como nenhuma outra pessoa é agredida com a presente conduta não há necessidade de punir. Há uma autolesão consciente por parte do consumidor. É como a tentativa de suicídio, por exemplo.
É evidente que o legislador mantém a incriminação (art. 28 da Lei n. 11.343/06) sob pena de que com o seu abandono derive uma considerável insegurança jurídica. E isto é muito perigoso, porque com tal atitude – predominantemente retributiva e que, assim, deve ser rejeitada em prol dos postulados de prevenção geral e especial – procura moralizar a sociedade por intermédio do direito penal. E logo quem quer moralizar...
[1] GRECO, Luís. “Breves Reflexões sobre os Princípios da Proteção de Bens Jurídicos e da Subsidiariedade do Direito Penal”, in Direito Penal. Aspectos Controvertidos. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 160.
[2] ROXIN, Claus. “Que Comportamentos pode o Estado Proibir sob Ameaça da Pena. Sobre a Legitimação de Proibições Penais”, in Estudos de Direito Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 39-52.
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