sábado, 10 de julho de 2010

Diálogo entre filho e pai sobre matéria jurídica

Ps. Um pouco longo, mas vale a pena ler...

Na hora do almoço...

F: Pai, viu a nova do Tribunal de Justiça de Santa Catarina?
P: Não. Alguém se exaltou com os policiais numa blitz?
F: Bem capaz pai, é óbvio que isso não acontece.
P: Sim, você está com a razão. E o que foi então?
F: Uma decisão sobre o crime de embriaguez ao volante.
P: Ah é. E daí? Deixa eu comer...
F: Espera...
P: Essa é a cópia da decisão?
F: Aham, foi na Apelação criminal n. 2009.022814-8, de São José.
P: Recente né? De 4 de maio de 2010.
F: Sim, eu fico atento as novidades.
P: Você vai longe, mas podemos comer?
F: Poxa, você sempre diz que não conversamos sobre o direito.
P: Desculpe, o que diz a decisão?
F: Então, ele entendeu que a recusa do condutor do carro à realização do exame de alcoolemia pode ser suprido por qualquer meio de prova. O senhor sabe né?, tipo, uma testemunha. E tem até citação de julgados do Superior Tribunal de Justiça.
P: E o que isso me interessa?
F: Fala sério pai, você já tomou duas geladas antes do almoço e daqui a pouco vai trabalhar de carro. O mesmo pode acontecer com você.

... silêncio ....

P: Tá, mas diz aí, você achou correta a decisão?
F: Não, aprendi diferente com meu professor na faculdade.
P: Mas já te disse que esse teu professor fala demais e quem decide deve entender, não?
F: Sim, é verdade, mas ele é seguro nos argumentos e não vejo essa segurança na fundamentação do Desembargador. Sabe pai, o professor disse que a prova que o condutor esteja bêbado ...
P: Ele disse assim: "prova que esteja bêbado"... É essa a linguagem jurídica?
F: Lógico que não, bem... Que a prova de que o condutor teria ultrapassado o percentual que a lei prevê como limite só pode ser feita por meio de exame de sangue.
P: Mas eu vejo toda hora na TV falando do tal bafômetro.
F: Então pai, essa história do bafômetro é furada, pois é inconstitucional. Ele explicou em sala os vários artigos da Constituição que são desrespeitados. Mas sei lá, não vejo nos julgados falarem da Constituição...
P: Bom, eu sou leigo, mas se teu professor diz, é porque ele deve ter estudado né? E por que será que você não vê citação da Constituição na decisão?
F: Sei lá. Vai ver quem julga não precisa dela.
P: Mas lembro que no primeiro dia de aula você veio me pedir dinheiro para comprá-la.
F: Sim, e eu leio ela. Vi que outros professores falam também que é importante conhecer o que a Constituição regula. Inclusive pai, com a mesma força constitucional, tem um princípio no Pacto de San Jose da Costa Rica que diz que ningém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. Aí fiquei pensando: se o agente não faz o exame é por que não quer se autoincriminar.
P: Mas o Desembargador é esperto então, pois não disse que poderá usar outras provas?
F: Aí é que está pai. Qual a base legal para ele dizer isso?
P: A Constituição não foi né?
F: Não, acho que ele não abriu. Ele fala de uma Resolução do Contran e do Código de Trânsito.
P: Mas resolução é uma lei, não é?
F: Não, pois não foi promulgada pelo legislativo. Seria um ato do Poder Executivo. Aí é que está minha dúvida: se o agente não quer realizar o exame pericial é porque não quer fazer prova contra si mesmo. Logo, o que importa é isso: a prova.
P: Não entendo nada disso...
F: É claro...veja comigo pai. Olha o que diz a Constituição: em matéria processual a competência é exclusiva do Poder Legislativo...Está claro aqui no art. 22, I.
P: E você disse que Resolução é do Poder Executivo...
F: Então! Não pode ser usada como matéria probatória. Não poderia ser base para dizer que se pode valer de outras provas em caso de negativa do condutor se submeter ao exame pericial.
P: Como o Desembargador não viu isso?
F: É o que eu disse. Não deve ter aberto a Constituição.
P: Mas você falou que ele citou o Código de Trânsito, não foi? Código é lei e, portanto, agora você já achou sua base legal e nós podemos comer...
F: Espera... Veja, é lei, mas acho que ele comeu bola também.
P: "Comeu bola" não é um termo que um jurista como vc deve usar... mas por falar em comer!
F: Para de zoar e acompanha o raciocínio. Eu estava vendo aqui na decisão que o Desembargador faz a citação do art. 277, § 2º da lei de trânsito para sustentar que se admite outros meios de prova nesse caso. Agora veja comigo pai. Esse artigo diz que a infração de dirigir sob influência de álcool, prevista no art. 165, poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante outros meios de provas em direito admitidas acerca dos sinais de embriaguez.
P: Mas você não me disse no começo que se tratava de uma decisão pelo crime de embriaguez ao volante. Tem também uma infração administrativa de embriaguez?
F: Isso pai. São duas coisas totalmente diferentes. E segundo o Código de Trânsito esse artigo citado (art. 277, § 2º) não tem relação com o artigo que prevê o crime de embriaguez. Logo, é imprescindível o exame de sangue. Tudo isso lembro bem que o professor falou.
P: É, eu que nem sou julgador, chego a essa conclusão apenas lendo atentamente esse artigo e em nenhuma passagem se depreende autorização para aplicação por extensão ao crime. Espera lá, ele escreveu "embriaguês"...
F: Pois é, é com Z e sem acento, né?
P: Tanta coisa: não abriu a Constituição, não interpretou a norma corretamente...
F: Vou perguntar ao professor se o que o Tribunal de Justiça está fazendo não é legitimar que se utilize provas ilícitas no processo. Amanhã tem aula, mas agora vamos comer....

....

No dia seguinte, o pai espera o filho para saber as novidades...

P: E aí, falou com o professor?
F: Não é que o cara já sabia dessa decisão. Foda, fiquei de cara. Achei que ia levar uma novidade. Sabe o que ele me disse?
P: Não, não estive em sala de aula hoje.
F: Fala sério! Ele falou assim: que o TJ também está com a mania de recorrer ao art. 167 do CPP que permite a prova testemunhal em infrações que deixam vestígios quando o agente se nega a realizar o exame pericial. Até me passou um processo em que isso ocorreu: Apelação criminal n. 2009.029330-3, de Canoinhas, j. 22 setembro de 2009.
P: Tua avó nasceu em Canoinhas.
F: Sim, mas em relação a este processo ele pediu para eu estar atento e disse que tenho que ler alguns autores e não um tal de Freguez, não lembro direito... Bom, aí me indicou um livro e fui buscar na biblioteca. Olha o que diz aqui: "que se a inspeção, por exemplo, não pode ser realizada por incúria da pessoa interessada ela não poderá ser substituída pela prova testemunhal, uma vez que não se verifica na espécie fato absolutamente invincível".
P: Antonio Heráclito Mossin. Se quiser compro para você esse livro...
F: Valeu. Tem um outro que também quero.
P: Então o que você ia perguntar para ele acontece, não? O Tribunal está legitimando a utilização de uma prova ilícita ao admitir que o testemunho do policial supra a omissão do condutor que se negou em realizar o exame pericial para caracterizar o crime de embriaguez. Acho que o pessoal no Tribunal não está lendo bons livros.
F: Sim pai, bem isso. Mas você vai ficar de cara agora.
P: Por que?
F: Naquela decisão de ontem, o professor me mostrou que o desembargador citou precedentes do STJ. Eu até comentei com vc isso.
P: Certo, e o que tem isso?
F: Então, a lei foi modificada em 2008 e alterou, inclusive, aquele art. 277, § 2º que lemos ontem e você que nem é da área concluiu que não se aplicava ao crime de embriaguez ao volante.
P: Ok, mas e o precedente do STJ? Não estou entendendo.
F: É isso que você vai ficar de cara. Na decisão do TJ - que é recente, deste ano - faz-se citação de uma decisão do STJ de 2007, ou seja, de antes da modificação da lei.
P: Entendi, e antes da reforma podia aplicar aquele artigo?
F: Isso pai, mas apenas antes da nova lei. Mas o desembargador continua aplicando.
P: Vai ver que ninguém vê isso e ele vai aplicando. Que engraçado isso!
F: Não é engraçado, mas sim preocupante. Já faz quase dois anos que o artigo teve a sua redação modificada e mesmo estando claro na lei que em caso de omissão do agente as outras provas só podem ser utilizadas para comprovar a infração administrativa de embriaguez ele vai aplicando também em relação ao crime.
P: Pois é. Nada de engraçado. Pode estar prejudicando mais gente.
F: Então, o professor disse que o mesmo se passa em outros Tribunais e também no STJ que todo mundo cita como se sempre decidisse correto.
P: Fala sério?
F: Sim, é de ficar de cara não? Agora eu entendi porque o professor falou para ler o teor do voto e não apenas a ementa. É porque a ementa encobre muitas vezes o julgamento.
P: Faça o que ele manda.
F: Sim. E como viu que estou entusiasmado, ele me passou outras decisões para ler. Foi bem atencioso. Disse que vale muito a pena ler esses dois julgados aqui.
P: Habeas corpus n. 2009.001854-7, rel. Des. Gilberto Castro, j. 17/02/2009; e, Habeas corpus n. 132.374, rel. Min. Felix Fischer, j. 06/10/2009. Então vai ler...
F: Sim, vou sim.
P: Qual o outro livro que você quer que eu compre?
F: Ah, ainda não saiu. É do meu professor.
P: Como mesmo se chama:
F: Direito Penal de Trânsito. É pela editora Lumen Juris do Rio.
P: Não o livro, o professor?
F: Ah, Leonardo Schmitt de Bem
P: Ok filho, estude hoje a tarde...
F: Sim, vou ler os julgados, e depois voltar a ler a Constituição.
P: Isso mesmo...

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