sexta-feira, 30 de julho de 2010

Fuga do local do acidente

Decisão do TJ-SP levanta polêmica sobre direito de autor de crime de trânsito fugir do local, extraído do site do UOL (segue comentário ao final)

Em decisão polêmica, a Justiça paulista mandou trancar uma ação penal em que um homem responde por ter fugido após se envolver em um acidente de trânsito. O argumento usado foi o de que o delito viola a Constituição Federal, que garante a toda pessoa o direito de não produzir prova contra ela mesma.


O tema não é pacífico nos tribunais e envolve o artigo 305 do atual Código de Trânsito Brasileiro, que trata do delito da fuga do local do acidente. A decisão é inédita por ter partido do Órgão Especial do Tribunal de Justiça, colegiado de cúpula com atribuição política e administrativa no Judiciário de São Paulo.

A decisão do TJ paulista levanta o debate sobre o direito ou não do autor de crime de trânsito fugir do local do delito para não produzir prova que o incrime. A discussão ganha maior importância diante do acidente que vitimou o filho da atriz Cissa Guimarães, no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro.

Rafael Mascarenhas andava de skate durante a madrugada do último dia 20, dentro de um túnel que estava interditado, quando foi atropelado por um veículo. O motorista não prestou socorro à vítima. O rapaz foi levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos.

“A fuga é a pior prova que o autor do crime pode produzir contra ele”, diz o procurador de Justiça Roberto Alceu de Assis Júnior, do Ministério Público de São Paulo. “É possível sim, incriminar a conduta de fuga do local do acidente e o dispositivo do Código de Trânsito é constitucional”, completou Alceu, ressaltando que "quem não deve, não teme".

Já a advogada Carla Domenico tem posição contrária. Para ela, que esclarece estar falando em tese, não existe razão lógica para obrigar quem quer que seja a se autoacusar, permanecendo, por exemplo, no local do crime.

Domenico destaca ainda que se essa conduta não é exigida para crimes mais graves não deveria, portanto, ser obrigatória para delitos de trânsito. A advogada considerou acertada a decisão tomada pelo Órgão Especial do Tribunal paulista.

Também se manifestando em tese, a desembargadora Angélica de Almeida, da 12ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, admitiu que tipificar o delito do artigo equivale a obrigar o suspeito ou acusado a se autoincriminar, em flagrante afronta à Constituição Federal.

“Se é certo que ninguém pode ser obrigado a produzir prova para caracterizar sua própria culpa, isto é, não pode ser obrigado a se submeter a exame para fazer prova de embriaguez, por exemplo, é de todo incongruente ter como típica a conduta de quem deixa o local dos fatos com a intenção de fugir à responsabilidade penal ou civil”, completa a desembargadora.

Entenda o caso em julgamento
O caso em julgamento envolveu um acidente de trânsito ocorrido na altura do km 448 da rodovia Régis Bittencourt, no município de Registro (a 187 quilômetros de São Paulo). O acidente provocou a morte de Leandro Rocha, que pilotava uma motocicleta.

O acidente aconteceu na madrugada de 23 de maio de 2007. O administrador Guilherme Jacob conta que dirigia seu carro, um Land Rover, e quando fazia a ultrapassagem de um caminhão se deparou com a moto. Ele alega fatalidade e diz que a motocicleta estava praticamente parada na pista.

A juíza da 1ª Vara de Registro recebeu a denúncia oferecida pelo Ministério Público e instaurou ação penal contra Jacob para que respondesse pelo crime de homicídio culposo (sem intenção de matar), com a agravante de omissão de socorro, e ainda pelo delito de fuga à responsabilidade civil e penal.

A defesa de Jacob feita pelo criminalista Roberto Podval, que atuou no julgamento do casal Nardoni, entrou com recurso no Tribunal de Justiça para o trancamento da ação penal.

Podval argumentou que o recebimento da ação com respeito ao crime de fuga do local do acidente viola o direito Constitucional de qualquer pessoa a não se incriminar.

O recurso de Podval foi parar na 8ª Câmara Criminal que, por votação unânime, aceitou a alegação apresentada pela defesa, mas preferiu que o caso fosse apreciado na forma de incidente de inconstitucionalidade pelo Órgão Especial do Tribunal, com atribuição para tratar do assunto.

A Procuradoria-Geral de Justiça deu parecer contra a pretensão da defesa e pela constitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito. O relator do caso, desembargador Reis Kuntz, seguiu o entendimento do Ministério Público e votou pelo prosseguimento da ação penal em todos os delitos apontados.

No entanto, o desembargador Boris Kauffmann abriu divergência aceitando a tese de inconstitucionalidade. O Órgão Especial é formado por 25 desembargadores e, por maioria de votos, referendou a tese de Kauffmann.

Campos opostos
A divergência colocou em campos opostos os chamados legalistas (apegados ao texto da lei) e os garantistas, defensores rigorosos das garantias constitucionais e dos tratados internacionais de defesa dos direitos humanos dos quais o Brasil é signatários.

O procurador de justiça Sérgio Turra Sobrane defende que, no caso em julgamento, a garantia é essencialmente processual, o que não impede a possibilidade de incriminar a fuga do local do acidente de trânsito. Para Sobrane, é preciso fazer distinção entre o dever de colaborar com a Justiça e o direito ao silêncio.

Na opinião do representante do Ministério Público, o direito ao silêncio é uma garantia constitucional, mas que não pode ser aplicada nos crimes de trânsito, quando o autor do delito foge do local para se livrar de responsabilidade civil e criminal.

Sobrane lembra que o delito previsto no artigo 305 do Código de Trânsito prevê pena de detenção que pode variar de seis meses a um ano, de acordo com a gravidade da conduta.

O desembargador Boris Kauffmann discorda do argumento do procurador de Justiça. Para Kauffmann os direitos e garantias previstas na Constituição Federal existem para limitar a atuação do Estado na sua atribuição de punir aqueles que praticam crimes.

E, segundo Kauffmann, entre essas garantias está o privilégio contra a autoincriminação. Para ele, essa garantia é manifestação de outros direitos como o da ampla defesa, o da presunção de inocência e o do suspeito permanecer calado.

“A prova da culpa incumbe exclusivamente à acusação”, rebateu Kauffmann, acrescentando que privilégio não se restringe ao preso, mas a qualquer pessoa, inclusive testemunhas, suspeitos, indiciados e acusados.

O desembargador ainda lembrou o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, que também assegura o direito do suspeito ou acusado não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem de se confessar culpado.

Mas o relator do recurso, Reis Kuntz, tem entendimento diferente. Para ele, a conduta de fugir do local do acidente com a intenção de não ser identificado e, assim não responder penal e civilmente pelo delito, não colide com princípio constitucional.

Para Kuntz, a inconstitucionalidade não existe, pois a norma de trânsito pretende preservar a segurança pública, a saúde dos usuários de ruas e estradas e o correto e eficiente funcionamento da função da Justiça.

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O Pleno da Corte de Minas Gerais julgou incidente de inconstitucionalidade, resultando declaração: “Incidente de inconstitucionalidade. Reserva de plenário. Art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro. Incompatibilidade com o direito fundamental ao silêncio. Inconstitucionalidade declarada” (IC n, 1.0000.07.456021-0/000, de Lagoa da Prata, rel. Des. Sérgio Resende, j. 11/06/2008).

A Segunda Câmara do Tribunal de Santa Catarina assim procedeu entendendo a relatora que o presente delito ofende os princípios da ampla defesa, da igualdade e da proporcionalidade, bem como o cerceamento de liberdade por eventual condenação pelo delito configuraria modalidade de prisão por responsabilidade civil. Vide: Apelação criminal n. 2009.026222-9, de Forquilinha, rel. Desª. Salete Sommariva, j. 28/09/2009.

Fui no site do TJSC para ver se o incidente já foi julgado e só observei sucessivos adiamentos.

21/07/2010 às 14:00 Julgamento Adiado (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal)
Data da pauta: 04/08/2010
07/07/2010 às 10:23 Julgamento Adiado (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal)
Data da pauta: 21/07/2010
16/06/2010 às 14:00 Julgamento Adiado (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal)
Data da pauta: 07/07/2010
02/06/2010 às 14:00 Julgamento Adiado (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal)
Data da pauta: 16/06/2010
19/05/2010 às 14:00 Julgamento Adiado (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Criminal)
Data da pauta: 02/06/2010

Obs. Procurei no site do TJSP, mas não achei a decisão. Se alguém encontrar coloque aqui nos comentários. Sobre o que eu penso deste artigo, quem quiser poderá consultar a obra que estarei lançando e que fiz propaganda em post anterior.

Um comentário:

  1. Conclusão: Aquele que evade do local de acidente furta da sociedade a responsabilidade civil e criminal, conforme prevê cristalinamente o art. 305 do CTB. Invocar inconstitucionalidade sobre o fato típico é fugir novamente as responsabilidades legais. Como bem observado no excelente texto acima "quem não deve não teme" fugir do local muda completamente o local dos fatos e condições do veículo e condutor. Advogados que defendem teses contrárias contra a literal disposição do art. 305 do CTB devem ser processados por assédio processual e sofrer a sanção disciplinar da OAB.

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