quinta-feira, 18 de março de 2010

Decreto-lei n. 3.689/1941


ROBERTO LAURIA
CONSELHEIRO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL
Membro da Comissão Especial de Estudo do Projeto do Novo Código de Processo Penal
PRIMEIRA PROPOSIÇÃO
Substitutivo do Projeto de Lei do Senado nº 156 de 2009:
Emenda nº
Alterar a redação dos arts. 14 e 265, da seguinte forma:
Art. 14. É facultado ao investigado, por meio de seu advogado ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.
§1º As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento das pessoas ouvidas.
(Acrescentar)
§2º O investigado deverá, ainda, ser expressamente informado do direito de não produzir provas contra si, podendo se negar a participar de qualquer ato considerado prejudicial à sua defesa.
SEGUNDA PROPOSIÇÃO
Art. 265. Na audiência, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações da vítima, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
§1º Se possível, todos os atos serão realizados em audiência única, facultando-se ao juiz o fracionamento da instrução quando for elevado o número de testemunhas.
§2º O juiz arguirá os depoentes se, ao final da inquirição das partes, tiver dúvida relevante sobre elementar ou circunstância do fato imputado.
§3º Se necessário, nova audiência será designada no prazo máximo de 15 (quinze) dias, intimados desde logo todos os presentes.
(Suprimir os parágrafos 4º e 5º)
JUSTIFICAÇÃO
O Brasil, no ano de 1992, por meio do Decreto nº. 676, tornou-se signatário da Convenção Americana dos Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Incorporando essa legislação a nosso ordenamento pátrio, agregaram-se valores prodigiosos e ricos no que diz respeito à dignidade humana, principalmente no capítulo dos Direitos Judiciais, que conflitam vertiginosamente com os do Código de Processo de 1941. Como exemplo, o dispositivo que assegura o direito da não auto-incriminação:
“Art. 8º - Garantias judiciais:
(...)
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(..)
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.”
No contraponto da legislação acima, os elaboradores deste anteprojeto do CPP, não recepcionaram tal garantia no novo texto, mostrando-se, mais uma vez, incoerente se considerarmos que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 466.343/SP, em 03 de dezembro de 2008, reconheceu expressamente o valor supralegal dos tratados de direitos humanos que forem ratificados pelo Brasil e incorporados ao direito interno – como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica – de modo que, uma vez aprovado por quorum qualificado pelo Congresso Nacional, seu valor é de Emenda Constitucional (art. 5º, §3º da CF/88), cuja violação fere de morte os postulados básicos de nosso Estado constitucionalista.
Portanto, percebe-se que a mencionada garantia possui status constitucional, sendo elencada no rol dos direitos fundamentais do acusado. Isto porque a garantia ao silêncio, que dele decorre, é considerada direito de primeira geração, representando a possibilidade de resistência do jurisdicionado frente ao Estado.
Bem verdade que, satisfatoriamente, muitas foram as garantias incorporadas no anteprojeto do CPP, contudo, o direito de não fazer prova contra si, também conhecido por “nemo tenetur se detegere”, reconhecido pela doutrina e jurisprudência, inexplicavelmente, não foi alcançado pelos trabalhos da reforma.
Tal dogma, como já firmamos, resta estabelecido e reconhecido pela legislação do Pacto de São José da Costa Rica[1], e consolidado na interpretação da Suprema Corte, de modo que a ausência de menção a ele merece veementes protestos.
Da análise dos dispositivos do anteprojeto que versam sobre os atos de auto defesa, dentre os quais se insere o interrogatório, em seu art. 63 e seguintes, cumpre ressaltar que muito embora tenha o novo texto estabelecido expressamente os direitos do interrogado (art. 65), não consta a garantia da não auto-incriminação, que confere ao indiciado/acusado o direito de se opor à sua participação na produção de provas que lhes sejam desfavoráveis.
Não obstante, destaque-se que, de igual modo, o capítulo atinente ao inquérito policial, muito embora seja prodigioso em enumerar diversas garantias nessa fase, também se omitiu quanto ao direito da não auto-incriminação (art. 8º e seguintes), que mais uma vez não foi homenageado.
Mas ainda, a novel legislação, que, segundo sua exposição do motivos, “tem o compromisso de harmonizar as garantias processuais com a Magna Carta”, além de não garantir expressamente o direito supra citado, ainda faz um odioso e inconstitucional estímulo à sua violência, ao aduzir, em seu artigo 265, §4ª que “o acusado que regularmente intimado para a audiência não comparecer poderá ser conduzido coercitivamente se demonstrada a necessidade de reconhecimento de pessoa na produção de prova testemunhal”. (grifo nosso)
Ora, ao afirmar peremptoriamente que o acusado poderá ser conduzido coercitivamente para realizar o meio de prova de reconhecimento de pessoas, o anteprojeto está inserindo entendimento patentemente ultrapassado, colocando o acusado como mero instrumento do processo, e não como sujeito de direitos e garantias como de fato é, razão pela qual não pode ser compelido a realizar o referido ato de reconhecimento, eis que incluído na cota da não auto-incriminação.
Portanto, o texto não reconhece expressamente o direito de não fazer prova contra si, e ainda, prevê, expressamente, mecanismos para sua violação, razão pela qual merece nosso reparo.
DO DIREITO DE NÃO SE AUTO-INCRIMINAR
Tal direito, também acolhido sob a denominação de princípio nemo tenetur se detegere, amplamente consubstanciado na doutrina e jurisprudência, resta positivado no Pacto de São José da Costa Rica, do qual é o Brasil signatário, como firmamos retro.
Portanto, elevado ao status de direito fundamental, veda-se em absoluto a obrigatoriedade a auto-incriminação, uma vez que: “O direito não pode ir de encontro à natureza do ser humano. A norma jurídica não pode impelir comportamentos contra a natureza humana; essa é a razão pela qual a fuga do preso não é prevista como crime, o instinto de busca pela liberdade e o de não se auto-incriminar são inatos (...) Como o princípio é inerente à condição humana, mesmo estando formalmente na condição de testemunha, o cidadão tem o direito constitucional de não produzir prova contra si mesmo” [2].
Destarte, explica a doutrinadora Maria Elizabeth Queijo, em sua obra sobre o tema, que muito embora fortificado no período iluminista, a construção teórica do princípio da não auto-incriminação sempre foi alvo de controvérsias, de modo que, ao citar o ilustre Beccaria, explica que: “(…) na medida em que sustenta que o dever de dizer a verdade, imposto ao acusado pelo juramento, é antinatural, mas entende que o acusado silente deve ser apenado gravemente, por constituir ofensa à Justiça. Mas foi nesta época que o acusado passou a ser visto não tão só como objeto de prova e que, aos poucos, foi sendo afastada a obrigatoriedade de fornecer prova contra si mesmo.”[3]
Desta forma, é pacífica a jurisprudência em consagrar este direito no ordenamento jurídico pátrio, vedando a imposição de qualquer ato do qual possa resultar a imputação de crime ao indivíduo.
Sobretudo porque a principal função de tal princípio é a de proteção do acusado, no que tange à produção probatória, de modo que permitir que o Estado - já dotado de forte aparato para a apuração da utópica “verdade real” - viole livremente o direito de não se auto-incriminar, é institucionalizar também a violação da dignidade da pessoa humana, do direito à honra, imagem e a intimidade, o que não se coaduna com uma Nação que logo no art. 1º de seu Texto Político se intitula democrática de Direito.
Para o processualista Guilherme de Souza Nucci, o princípio decorre da conjugação dos princípios constitucionais da presunção de inocência e ampla defesa, afirmando que: se o indivíduo é inocente até que se prove sua culpa, possui então o direito de produzir ampla prova em seu favor, bem como de quedar-se em silêncio sem que isso possa lhe acarretar qualquer prejuízo.[4]
O princípio do nemo tenetur se detegere, “atua ainda na tutela da integridade física do réu, na medida em que autoriza expressamente a não-participação dele na formação da culpa”[5].
Neste mesmo sentido, a Suprema Corte, incisivamente já se posicionou:
A garantia contra a auto-incriminação não tem limites espaciais nem procedimentais, estende-se a qualquer indagação por autoridade pública de cuja resposta possa advir subsídios à imputação ao declarante da prática do crime”. (STF – HC 79.244-8 – Rel. Sepúlveda Pertence – j. 26.04.99);
Perícia grafotécnica e vedaçao da produção de prova contra si mesmo – Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do CPP há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio” (HC 77.135, Rel. Min, Ilmar Galvão, DJ 06/11/98) - destaquei.
Por conseguinte, percebe-se, assim, que a atitude correta do legislador, em harmonia com os preceitos hodiernos inerentes à condição de Estado Democrático de Direito (Constituição Federal e Pacto de São José da Costa Rica), seria de, primeiramente, garantir o dever do Estado em advertir o investigado da não obrigatoriedade de se auto-incriminar, e, em segundo lugar, assegurar expressamente tal direito.
Desta forma, garantiríamos a ciência do acusado quanto à existência do direito e, por conseguinte, do próprio direito em si.
Outrossim, é oportuno destacar, por emanação do princípio do contraditório, que é imperioso não somente o ato de autodefesa, mas primeiramente a advertência de sua existência. Ora, qual serventia teria a Constituição Federal outorgar ao acusados em geral direitos e garantias processuais, que são limitadores da função punitiva estatal, se o cidadão não for orientado pelas autoridades da possibilidade de realização de tais direitos? As garantias constitucionais só se efetivam plenamente com sua ciência, sob pena de se tornar uma falácia.
Assim, conclui-se que o princípio da não obrigatoriedade de auto-incriminação representa a proteção do acusado contra as hostilidades e intimidações historicamente desfechadas contra os réus pelo Estado, de modo que a sua ausência no novel código, que ainda institucionaliza uma violação grotesca à ele (art. 265, §4º) representam um retrocesso, que invariavelmente será objeto de censura pelo Supremo Tribunal Federal, diante de sua incompatibilidade com o texto constitucional e com os ideais básicos de um Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido fica a proposição de inserção do parágrafo segundo ao artigo 14, com a redação exposta no preâmbulo, bem como a supressão dos parágrafos 4º e 5º do artigo 265, pelos motivos supra.

[1] Pacto de São José da Costa Rica, assinado pelo Brasil, e incorporado ao direito pátrio pelo Decreto 676, de 01/11/92, onde consagra em seu art.8º, nº2, alínea g, que “toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem declarar-se culpada”.
[2] BEDÊ JR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do Processo Penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. 2009, p. 38.
[3] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 9.
[4] Vide: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
[5] PACCELI, Eugenio. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 341.

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