quarta-feira, 17 de abril de 2013

Resposta à Eduardo Cabette


                Prezados, tomei conhecimento de texto escrito por Eduardo Cabette sobre a natureza jurídica do novo delito de embriaguez ao volante (art. 306 com redação dada pela Lei n. 12.760/2012). Segundo a sua doutrina, o denominado “crime de perigo abstrato de perigosidade real” é uma falácia[1]. Gostaria de expor algumas considerações, pois trabalhei essa teoria em meu último livro.

                O autor explica que quanto à exigência de concreção do perigo há três modalidades de delito: de perigo abstrato, de perigo concreto e de perigo abstrato de perigosidade real. Sua lição é incorreta. Do ponto de vista analítico há uma dicotomia clássica – e que se estende aos dias atuais – em relação à relevância do perigo para a consumação das infrações. Assim, os crimes de perigo podem ser de perigo abstrato ou de perigo concreto. A suposta terceira modalidade não existe de forma autônoma. É uma derivação mais específica do delito de perigo abstrato, descrita em seu texto com “criação mirabolante”, “fórmula pseudocientífica”, “besteira enfeitada com ares de sapiência”, “categoria dos malsinados”, etc., apresentada por “charlatões e prestidigitados intelectuais”.

É mais ou menos assim. O autor considera as teses da periculosidade como elemento basilar dos crimes de perigo abstrato elaboradas por Silva Sánchez, Marina Lluch e Vicente Martínez, por exemplo, falaciosas e seus idealizadores como embusteiros. Também poderia citar autores portugueses, italianos ou alemães que seguem essa temática, mas a seguir a bibliografia de seu texto, certamente o autor não os conheceria. Igualmente não deve saber que Silva Sánchez representa um marco temporal entre o passado e o presente no Direito Penal. Entende-se, pois o autor não deve acompanhar esse extraordinário penalista.

Já no final de seu texto apresenta outras classes de delitos de perigo abstrato, porém agora com tom mais moderado, embora todas elas, conjuntamente com a classificação combatida, sejam propostas para legitimar os delitos de perigo abstrato. Ou seja, como a tese da perigosidade real dos delitos de perigo abstrato parece incomodá-lo, buscou criticar de maneira veemente, valendo-se de expressões deselegantes e impróprias. Depois ventilou sua própria classificação (delito de perigo abstrato como de perigo notório).

O autor entende que a classificação “crime de perigo abstrato de perigosidade real” não passa de uma alteração do nome daquilo que é conhecido como “crime de perigo comum” e que ela decorre de uma confusão doutrinária que equipara os delitos de perigo concreto e abstrato com os delitos de perigo coletivo e individual. Causa-me surpresa que é o autor que constrói essa ideia e é o autor que afirma que muitos não compreendem as independentes dicotomias. Porém, o autor não apresentou nenhum nome para corroborar o que enfatiza. Penso que seria fácil para o autor nominar os penalistas que partem da suposta premissa errônea destacada em seu texto.

Valeu-se dos nomes de Hungria, Bruno e Noronha para esclarecer o que ninguém na doutrina moderna propõe. A classificação “crime de perigo abstrato de perigosidade real” é uma proposta para legitimar a infração de embriaguez ao volante considerada um delito de perigo abstrato tendo em vista que muitos penalistas, erroneamente, entendem que esses delitos são – por si sós – inconstitucionais. Quem a propõe não faz relação direta com os delitos de perigo comum ou individual como o autor diz. Aliás, repita-se, apenas o autor diz isso. Ademais, se a construção é aplicada especialmente aos crimes considerados vagos, não significa que seus proponentes confundam duas classificações diversas. Uma vez mais: somente o autor os acusa dessa estupidez.

O autor deseja desconstituir a doutrina de respeitados penalistas lembrando Capez e Damásio.  Propõe o argumento da autoridade, ao passo que outros propõem a autoridade do argumento. E isso não significa acreditar que aquilo que vem depois é melhor do que o seu precedente. Aliás, quando se deseja escrever sobre crimes de perigo, ao menos os penalistas do Brasil que trabalham essa temática deveriam ser consultados, salvo se o autor também os considera “charlatões”.

A doutrina combatida pelo autor tem o fim de auxiliar os magistrados a refutar a caracterização dos delitos de perigo abstrato como delitos de perigo presumido e, com isso, sua inconstitucionalidade. O objetivo é auxiliar os magistrados a interpretar evolutivamente o tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito, ou seja, para que eles procedam a uma interpretação constitucionalmente orientada para legitimar o direito de punir. O mesmo se passa com outras classes de perigo abstrato quando referidas a distintos delitos previstos no Código Penal e em leis especiais.

Requer-se dos magistrados, quanto ao delito de embriaguez ao volante, uma análise restritiva, pois se não há ninguém na rua ou nas imediações do veículo anormalmente dirigido pelo motorista sob a influência do álcool ou das drogas, não há porque puni-lo. Usando a sua nomenclatura: não há perigo notório. Agora, existindo pessoas ou carros no raio de ação do automotor conduzido pelo agente sob a influência de álcool ou de drogas, o perigo só é notório se a condução for anormal. Por isso sua tese não é de todo correta e a terminologia “crimes de perigo abstrato como de perigosidade real” é adequada, pois nesse segundo contexto, a análise dos juízes deverá ser teleológica, porque a aferição da tipicidade não deverá ocorrer unicamente pela descrição legislativa, sendo necessário precisar a perigosidade da ação preposta e oposta à proteção dos bens jurídicos. É uma exigência do tipo, que o autor e grande parte dos representantes do Ministério Público vão insistir em negar.

Quando se desconhece as teses acadêmicas apresentadas nas mais tradicionais escolas jurídicas sobre temas aqui discutidos, geralmente o crítico as rechaça com expressões baratas como “fórmulas pseudocientíficas” e adjetivações simplórias como “misteriosas”. É mais ou menos assim: nunca comi o doce, mas já digo que é ruim. Ademais, quanto a sua pergunta se as teses modernas deverão obrigar os acadêmicos a se atualizarem, respondo afirmativamente, salvo se a opção deles for continuar estudando os irmãos xifópagos ao invés de temas relacionados à sociedade de risco. É fácil: enquanto o autor cita Flávio Barros eles podem estudar Ulrich Beck.

É simples o conteúdo “dos crimes de perigo abstrato como de perigosidade real” para explicar aos alunos, sejam acadêmicos ou concurseiros. Trata-se de “delitos nos quais não se exige um resultado de risco para um específico objeto de tutela, mas é exigida uma conduta ex ante perigosa para o bem jurídico, de forma que sua aplicação requer a constatação da perigosidade real da conduta no caso concreto” (Marina Lluch). Por favor, não confunda caso concreto com perigo concreto. Silva Sánchez, por exemplo, explica que a perigosidade deve ser revelada como o injusto material dos delitos de perigo abstrato e, assim, em uma perspectiva teleológica, deve-se acrescentar esse elemento na descrição da conduta delitiva. Pierpaolo Bottini apresenta outros penalistas que defendem essa construção.

O delito de embriaguez ao volante como delito de perigo abstrato seria, assim, não um delito de desobediência (inconstitucional, recordo), mas um delito de perigosidade real, devendo-se apreciá-la sob uma ótima ex ante, diferentemente dos delitos de perigo concreto, em que a situação do perigo se apresenta ex post. Aliás, no seu texto há outro engano: o perigo nem sempre é elemento expresso nos delitos de perigo concreto. Consultar Giorgio Marinucci seria fundamental.

O que o autor entende por “ciência oficial”? Aqueles a quem buscou apoio para sustentar sua crítica? Aliás, de tanto citar autores sem prestígio, acaba por se autolesionar intelectualmente. Explico sucintamente. Afirmou que “o crime de perigo abstrato como de perigosidade real” é uma construção de categorias contrapostas. Claro que isso é incorreto, pois já demonstrei a diferença entre um crime de perigo abstrato e outro de perigo concreto. O autor insiste tratar-se de uma “quimera autofágica” ou um “instituto jurídico esquizofrênico” e chega a defender que a preservação dessa classificação fará com que o mesmo delito (art. 306) seja simultaneamente de perigo concreto e abstrato. Ocorre que o autor é o único que conheço que defende essa dupla classificação – que nenhum “charlatão” diz existir – para o delito de embriaguez ao volante. Vou refrescar a memória com seus próprios textos.

No texto que enseja minha resposta, em um dos inúmeros parágrafos, o autor disse: “ou bem um crime é de perigo abstrato ou é de perigo real”. Lembrando que em linhas anteriores menciona que o crime de perigo concreto também é denominado de crime de perigo real. Logo, para deixar bem claro: “ou bem um crime é de perigo abstrato ou é de perigo concreto”. Em outro texto, escrito no final do ano passado, quando já ventilava sua errônea classificação de perigo notório, o autor fez alusão às duas últimas leis: “conclui-se, portanto, que quando do vigor da Lei 11.705/08 o crime era invariavelmente de perigo abstrato, mas sob a égide da nova Lei 12.760/12 ele é de perigo abstrato no caso do artigo 306, § 1°, I e de perigo concreto no caso do artigo 306, § 1°, II, CTB” [2]. E agora: não era um ou outro?

Um tipo penal é formado por um preceito primário e outro secundário. O primeiro descreve a conduta proibida e no segundo é cominada a sanção. A proibição é única: “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Os dois incisos do primeiro parágrafo do preceito se relacionam às formas de comprovação da alcoolemia, como também o segundo parágrafo. Como o autor interpreta de modo incorreto o próprio dispositivo, também não entende sua natureza jurídica. É o quanto basta, pois estas eram as considerações que gostaria de apresentar ao autor.

Prof. Dr. Leonardo Schmitt de Bem



[1] Cabette, Eduardo Luiz Santos. Portal Atualidades do Direito, 25 de março de 2013.
[2] Cabette, Eduardo Luiz Santos. Portal Atualidades do Direito, 29 de dezembro de 2012.

3 comentários:

  1. Parece que a suposta antítese está mais centrada em defender os autores das teorias criticadas pela tese, do que em contradizer a tese.
    Péssimo saber que o pensamento jurídico brasileiro está reduzido à esta dimensão. Os questionamentos atingem mais a órbita pessoal do que a científica.

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  2. Prezado Anônimo, comentário postado. Podes ler o que eu e o Cabette escrevemos sobre o tema em nossos respectivos livros.

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