segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Embriaguez ao volante - doutrina

Pessoal, segue abaixo parte da aula que ministrei na ESA-PR no início de setembro. Todos que tiverem acesso a esse ensaio devem repassá-lo ao maior número de pessoas possível. Vocês entenderão o meu pedido.

Quem quiser usar como tese de defesa tem minha permissão. Os Promotores que quiserem usar como fundamento do pedido de arquivamento da ação penal também poderão fazer. Quem quiser decidir com base no que ensinei tem carta branca.

É preciso estudar, é preciso ler. E não apenas as ementas.

É um pouco grande, mas tenho TOTAL CERTEZA que vale a leitura.

Obrigado.

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A tipicidade delitiva e os problemas de comprovação da materialidade delitiva
Quando tudo parece resultar esclarecido – ao menos foi nossa tentativa – eis que a descrição legal confeccionada pela Lei n. 11.705/08 ao art. 306 requer a comprovação de concentração mínima de álcool no organismo do condutor do veículo automotor. E como poderá ser comprovada a materialidade é um dos problemas mais tormentosos relacionados ao delito. Isso porque a mais relevante polêmica descortinada com a nova lei se refere ao nascimento sem vida do preceito quanto à constatação da embriaguez se o condutor do veículo automotor se negar em ceder seu corpo ou parte dele para a realização do teste de alcoolemia. Explicamos melhor.
Em sua redação anterior, para configuração do delito, não era suficiente que o agente dirigisse o veículo automotor depois do consumo de álcool, pois era necessário que estivesse sob o seu efeito, isto é, conduzisse anormalmente por estar embriagado. A norma penal, porém, não fixava o quantum de concentração de álcool por litro de sangue a fim de impor a negativa de condução. Para aferição dessa circunstância – e conseqüente tipificação delitiva, porquanto espécie de norma penal em branco – o juiz recorria ao art. 276 da Lei n. 9.503/97 que estabelecia o limite com o qual o agente estava impedido de dirigir, isto é, seis decigramas de álcool por litro de sangue ou três décimos de miligramas de álcool por ar expelido dos pulmões conforme fator de conversão decorrente da Lei Henry [1].
Este fator de conversão era aplicado, por exemplo, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “pela legislação de trânsito, a concentração de 0,6 dg/l de álcool no sangue equivale a 0,3 mg/l de álcool no ar expelido pelos pulmões, ressaltando-se que as suas medições se fazem por meio de diferentes exames. O primeiro é conhecido como exame de sangue e o último por bafômetro, isto é, enquanto um se utiliza de amostra de sangue o outro é feito por meio do ar expelido pelos pulmões. Registra-se que as grandezas utilizadas a medir os índices se diferem, e como pode se observar são respectivamente decigrama por litro de sangue e miligrama por litro de ar expelido dos pulmões (Recurso criminal n. 05.027273-0, rel. Des. Solon d'Eça Neves, j. 04/10/2005).
Relevante afirmar que se o agente embriagado se negasse a realização do exame era possível suprir sua omissão por todos os meios de prova em direito admitidos. Com a redação atual, para completa tipificação também é necessário provar a concentração mínima de álcool no organismo do condutor do veículo, até porque se trata de um elemento normativo do tipo penal. Resta saber se qualquer prova em direito continua apta à aferição desta circunstância ou se há exigência dela ser obtida apenas de maneira específica, ou seja, mediante análise pericial.

3.1. A (im) possibilidade de prova testemunhal para comprovação da alcoolemia
Nesse aspecto, a primeira pergunta necessária a enfrentar é saber se é possível recorrer à prova testemunhal para fins de caracterização da materialidade delitiva? Essa discussão é a tônica em todas as Instâncias Estaduais de Controle, conforme se poderá observar dos precedentes favoráveis e contrários, pois vejamos exemplificativamente.
Favoravelmente podemos citar:
“Apelação crime. Embriaguez ao volante. Absolvição sumária. Art. 397, inciso III, do Código de Processo Penal. Ausência de teste de alcoolemia. Descabimento. Determinando o prosseguimento do feito. Descabe a absolvição sumária do réu sob o argumento de que o fato narrado na denúncia não constitui crime pela ausência de teste de alcoolemia. Embora a prova da existência do crime previsto no art. 306 da Lei n. 9.503/97, observada a redação da Lei n. 11.715/2008, deva ser feita, preferencialmente, por meio de perícia, tal pode ser suprida, pelo teste etilômetro (bafômetro) ou exame clínico e, mesmo, pela prova testemunhal” (TJRS, 2º C. Crim., Apelação criminal n. 700.316.657-97, rel. Desª. Marlene Landvoigt, j. 29/06/2010, DJ 28/07/2010).
“Habeas corpus. Homicídio culposo na direção de veículo automotor e embriaguez ao volante. Trancamento da ação penal. Aventada ausência de justa causa. Impossibilidade de análise aprofundada de provas na via eleita. Possibilidade de aferição da conduta delituosa prevista no art. 306 da Lei n. 9.503/97 por outros elementos que não o bafômetro. Fundamentação sucinta na decisão de recebimento da denúncia. Ausência de ilegalidade. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem denegada” (TJPR, 1ª C. Crim., Habeas corpus n. 683.038-2, de Cambé, Rel. Juiz conv. Luiz Osório Panza, j. 08/07/2010).
“Crime de embriaguez ao volante. Art. 306 da Lei n. 9.503/97. Necessidade de dar interpretação hermenêutica à Lei n. 11.705/2008, para atender aos seus próprios fins. Ausência de teste do bafômetro. Estado etílico que pode ser demonstrado por outras provas. Recurso ministerial provido. Ao operador do direito, atento as incongruências do legislador, outra solução não resta do que lançar mão da hermenêutica jurídica para decifrar a vontade da lei em face da realidade do país e da necessidade de impor mais rigor aos infratores das normas de trânsito” (TJSC, 2ª C. Crim., Apelação criminal n. 2009.007530-3, de Seara, rel. Des. Irineu João da Silva, j. 19/05/2010).
Ainda é possível encontrar decisão que, além de autorizar a comprovação da materialidade do delito por prova testemunhal, aplica um direito penal pessoal, pois afirma que para configuração do tipo penal configurado na lei de trânsito não é exigida concentração mínima de álcool no sangue, bastando que a conduta humana tenha sido praticada sob a influência de substância alcoólica ou de efeitos análogos. Nessa linha:
“Apelação crime. Dirigir sem habilitação. Embriaguez ao volante. Irresignação defensiva. Pretendida absolvição por ser atípica a conduta do acusado. Impossibilidade. Conduta evidenciada pelo conjunto probatório. Imprudência comprovada. Autoria e materialidade devidamente comprovadas. Está caracterizada a conduta descrita no art. 306 do Código de Trânsito se comprovada influência de álcool ou substância de efeitos análogos no agente, não sendo necessária a determinação do quantum desta substância no sangue. Estado de embriaguez é circunstância que, por si só, expõe a dano potencial a saúde de outrem” (TJMT, 2ª C. Crim., Apelação criminal n. 2943/2010, de Água Boa, rel. Des. Gérson Ferreira Paes, j. 10/03/2010).
Como “advogar” um direito penal pessoal acarreta fatalmente uma aplicação antidemocrática das normas penais, passamos diretamente a análise dos precedentes dos Tribunais Sulistas, pois todos, sem exceção, mencionam decisão do Superior Tribunal de Justiça que está servindo como paradigma no que diz respeito à possibilidade de se valer de prova diversa à pericial. Valho-me do texto da ementa em que se verifica que a embriaguez pode ser aferida por outros elementos, inclusive prova testemunhal.
Assim: “Recurso ordinário em habeas corpus. Tipicidade. Crime de trânsito. Embriaguez ao volante. Art. 306 da Lei n. 9.503/97. Recusa ao exame de alcoolemia. Inviabilidade da pretensão de trancamento da ação penal pela ausência de comprovação de que preenchido o elemento objetivo do tipo. Concentração de álcool do sangue. Desnecessidade de realização de exame específico para aferição do teor de álcool no sangue se de outra forma se puder comprovar a embriaguez. Estado etílico evidente. Parecer ministerial pelo desprovimento do recurso. Recurso desprovido” (STJ, 5ª Turma, Recurso em habeas corpus n. 26.432/MT, rel. Min. Napoleão Nunes Mais Filho, j. 19/11/2009, DJ 22/02/2010).
Lançando um olhar não apenas à ementa da decisão – como é a praxe na prática forense – mas ainda ao corpo do acórdão, vê-se que o Ministro relator expressamente aderiu ao parecer ministerial, porquanto o considerou irrepreensível. Transcrevemos o respectivo parecer: “não subsiste a alegação de que a falta de realização de exame de alcoolemia induz à atipicidade, pois a jurisprudência desse Eg. STJ tem admitido a comprovação da materialidade do delito por outros meios de aferição da embriaguez”. Na seqüência a Subprocuradora faz citação, para ilustrar sua tese, de outro julgado em que foi decidido que “a recusa do condutor do veículo legitima os agentes de trânsito à realização de outro tipo de prova para se verificar a presença de notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool. Este outro tipo de prova é o Auto de Constatação de Embriaguez, realizado através da observação do comportamento do condutor apreendido” (STJ, 5ª Turma, Recurso em habeas corpus n. 20.129/MT, rel. Min. Gilson Dipp, j. 24/04/2007, DJ 04/06/2007).
Posto isto, entendemos necessário realizar um esclarecimento: por evidente não há vedação em se valer, como forma de decidir, do parecer ministerial, salvo quando a proposta apresentada é totalmente equivocada, como no presente caso. Infere-se que a representante ministerial se valeu de um precedente do Superior Tribunal de Justiça que faz menção a um texto de lei já não mais vigente quando da apresentação do parecer. A Subprocuradora, valendo-se de julgado da Corte Superior – a decisão do Min. Gilson Dipp –, continuou atribuindo existência e eficácia a um texto já modificado (em 2008) em um parecer emitido em 2009.
Para tocar com as mãos o que estamos tentando demonstrar passemos a leitura do preceito antes da última reforma legislativa específica. O art. 277, § 2º com a redação da Lei n. 11.275/2006 apresentava o seguinte conteúdo: “no caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor”. Observem: o teor deste preceito é que balizou a fundamentação da decisão do Min. Gilson Dipp no julgado utilizado pela Subprocuradora e que teve parecer acatado – porque irretocável – segundo o Min. Napoleão Nunes Maia, servindo a decisão deste como modelo perante os citados Tribunais Sulistas.
Mas depois da promulgação da Lei n. 11.705/08 a redação do art. 277, § 2º se refere de forma expressa somente à infração administrativa de embriaguez ao volante. Atentem: “a infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”. Com a referência taxativa ao art. 165 da Lei n. 9.503/97 o legislador impediu a aferição da embriaguez para fins de comprovação do delito do art. 306 do Código de Trânsito por qualquer outra prova em direito admitida. Isso, ao menos, com base nesse preceito. Em síntese, não é mais possível valer-se de uma interpretação extensível nos moldes da antiga redação. A atual redação do art. 277, § 2º da Lei n. 9.503/97 somente vale para a infração administrativa de embriaguez ao volante.
Síntese: não será mais possível suprir a omissão do condutor que se negar a realizar o teste pericial com base no art. 277, § 2º da Lei n. 9.503/97 com a promulgação da Lei n. 11.705/08, porque esta regra não tem cabimento para a infração criminosa de embriaguez ao volante (art. 306). Repetimos: se possível valer-se da prova testemunhal, outro fundamento legal deverá balizar a sua incidência.
Redobremos nossa atenção. A fundamentação lançada no acórdão da lavra do Min. Napoleão Nunes Maia não é distante a que perfilhou o Min. Felix Fischer em caso anterior verificado no Mato Grosso do Sul. Por considerarmos relevante passamos a ilustração. Entendendo que não havia prova da materialidade do delito do art. 306 da Lei n. 9.503/97, pois seu cliente não foi submetido à realização do exame de alcoolemia para demonstrar que no momento do fato a concentração de álcool no seu sangue era maior que a prevista na lei, o defensor impetrou uma ordem de habeas corpus.
O indeferimento se processou nestes termos: “Habeas corpus. Conduzir veículo sob o efeito de álcool. Preliminar. Via inadequada. Prefacial que confunde com mérito. Pedido de trancamento da ação penal. Indícios de autoria e de materialidade. Matéria fática. Inadmissibilidade análise. Constrangimento não caracterizado. Ordem denegada. Havendo, em princípio, indícios de autoria e prova da materialidade, ainda que feita por testemunhas, nos termos do art. 277, § 2º do CTB, com a redação que lhe deu a Lei n. 11.275/2006, não há falar em trancamento da ação penal por falta de materialidade” (TJMS, 1ª Turma Crim., Habeas corpus n. 2009.001854-7, rel. Des. Gilberto Castro, j. 17/02/2009).
O relator apenas não se ateve a um detalhe: a regra do art. 277, § 2º da Lei n. 11.275/2006 não mais vigia no momento da ocorrência dos fatos – conforme destacado: dia 28/11/2008 – porque em junho do mesmo ano a Lei n. 11.705 alterou a redação daquele preceito. Assim, nenhum parâmetro diverso ao da prova pericial poderia ser utilizado para aferir a materialidade. As demais provas passaram a ser admitidas apenas para comprovação da infração administrativa de embriaguez ao volante (art. 165). Logo, o constrangimento ilegal que já era evidente tornou-se ainda maior. Conseqüentemente houve a proposição de novo habeas corpus e com idêntico resultado: indeferimento.
Decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “[...] Processual penal. Habeas corpus. Art. 306 do CTB. Alegação de ausência de justa causa para a persecução penal. Comprovação da embriaguez. Exame de alcoolemia não realizado por ausência de equipamentos na cidade. [...] Para a comprovação do crime do art. 306 do CTB, o exame de alcoolemia apenas pode ser dispensado nas hipóteses de impossibilidade de sua realização (inexistência de equipamentos necessários na comarca ou recusa do acusado a se submeter ao exame), quando houver prova testemunhal ou exame clínico atestando indubitavelmente (prontamente perceptível) o estado de embriaguez. Nestas hipóteses, aplica-se o art. 167” (5ª Turma, Habeas corpus n. 132.374, rel. Min. Felix Fischer, j. 06/10/2009, DJ 16/11/2009).
É evidente que o Tribunal ad quem não observou o erro de fundamentação do Tribunal a quo. Ademais, em nosso sentir, praticou outro equívoco. Infere-se que o exame de alcoolemia não foi realizado por falta de equipamentos hábeis, mas porque houve exame visual os julgadores decidiram pela presença da prova da materialidade do crime e, portanto, denegaram a ordem. Para nós a análise é simples: o Tribunal pode ter desfavorecido duplamente o impetrante, pois, primeiramente, conforme os expertos, “é sabido existirem pessoas que sofrem sérios transtornos, tanto somáticos quanto mentais, por influência de baixa alcoolemia, sem correspondência a um estado de embriaguez” [2] e, em segundo lugar, inexistindo o aparelho de bafômetro nada impedia a realização de exame pericial colhendo uma amostra de sangue. Por conseguinte, o Tribunal Superior negou efetividade ao teor do art. 306 do Código de Trânsito.
Sabe-se que diante da suspeita de condução irregular em razão da ingestão de álcool deve o agente de trânsito ou o policial, civil ou militar, cientificar o condutor da possibilidade de se submeter ao exame pericial. No entanto, sua negativa é lícita porque ninguém está obrigado a produzir provas em prejuízo próprio. Este princípio, previsto no Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º, II, g), ainda não teve seu significado aniquilado pelo Supremo Tribunal Federal, devendo ser tratado como uma garantia fundamental de todos os cidadãos.
Assim: “Habeas corpus. Constitucional. Impossibilidade de se extrair qualquer conclusão desfavorável ao suspeito ou acusado de praticar crime que não se submete a exame de dosagem alcoólica. Direito de não produzir provas contra si mesmo. [...] Nemo tenetur se detegere. É certo que, ao contrário do afirmado na denúncia, não se pode presumir que o paciente estaria alcoolizado pela recusa em se submeter ao exame de dosagem alcoólica: a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo [...]” (Habeas corpus n. 93.916-3/PA, rel. Min. Carmen Lúcia, j. 10/06/2008).
Entretanto, no precedente jurisprudencial da Corte Catarinense outrora referido, o Desembargador relator, acompanhado por unanimidade por seus pares, afirmou que considerar imprescindível o exame pericial para aferição da tipicidade do crime do art. 306 da Lei de Trânsito seria atentar contra vários princípios do processo penal brasileiro e, inclusive, a lógica. Para fundamentar a decisão, valeu-se o intérprete da doutrina de Fernando Capez e os seguintes dizeres: a ausência do teste de bafômetro e do exame de sangue não afasta a possibilidade de comprovação da ebriedade por outros meios, pois é sabido que podem ser supridos pelo “exame clínico feito pelo médico, que atesta ou não o estado de embriaguez, verificando o comportamento do sujeito através de sua fala, seu equilíbrio, seus reflexos, etc. na falta desses exames, a jurisprudência tem admitido a prova testemunhal” [3]. E particularmente complementou: “e, isso, salvo melhor juízo, mesmo após a edição da Lei n. 11.705/2008” para afirmar ao final: “donde se conclui, na linha esboçada pela doutrina, que, fiel ao que prescreve o art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro, aplicando-se aos crimes de trânsito as normas gerais do Código de Processo Penal, nas infrações que deixam vestígios, indispensável o exame de corpo de delito (art. 158), mas sendo ele impossível, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta (art. 167).
A negativa do condutor na realização do exame pericial não pode ser suprida simplesmente com a aplicação do art. 167 da Lei Adjetiva, segundo o qual “não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”. Não obstante a Lei de Trânsito contemple a aplicação subsidiária das normas processuais (art. 291, caput), o preceito remetido deve ser interpretado com absoluta reserva para que o exame de corpo de delito não seja substituído indevidamente pela prova testemunhal, principalmente em casos de falha do próprio sistema (ausência de etilômetro). Ademais, sobre a desídia do condutor em não se submeter à perícia e a sua impossibilidade de substituição pela prova testemunhal, doutrina Heráclito Mossin que “verifica-se pelo texto legal que a prova testemunhal apresenta-se como expediente meramente supletivo para a comprovação do exame de corpo de delito, somente sendo admissível quando for impossível a perícia por impedimento legal ou por fato absolutamente invencível. Se a inspeção não pode ser realizada porque por incúria da pessoa interessada ou da própria autoridade a quem incumbia produzir a prova os vestígios desapareceram, não pode essa inspeção ser substituída pela prova testemunhal, pois não se verifica na espécie fato absolutamente invencível” [4].
O que atenta contra a lógica é tentar buscar uma equiparação entre a prova testemunhal e a prova pericial. Aguardamos algumas respostas: cada agente de trânsito equivale a quantos decigramas de álcool por litro de sangue? Quantos policiais são necessários para aferir o percentual alcoólico? Qualquer perito, por mais competente, apenas em um olhar, sendo decididamente responsável, jamais conseguirá atestar se a concentração de álcool no organismo do agente alcança o nível de intensidade exigida no texto legal. Como afirmar, livre de imprecisão, que o condutor está com sete ou cinco decigramas de álcool por litro de sangue? Em sendo assim, que justiça é essa em que o condutor que estiver bem perante o policial, mas com taxa de álcool superior a permitida em lei continuará em liberdade, mas aquele que pouco bebeu e se apresenta tonto por qualquer circunstância ou mesmo pela bebida, pode ser preso em flagrante?
Atentem que com a modificação do Código de Trânsito, o imprescindível passou a ser a comprovação do quantum de álcool presente no sangue do condutor. No entanto, erroneamente, considerável parcela da Magistratura e do Ministério Público vale-se da prova testemunhal para comprovar o que não é exigido legalmente, ou seja, a influência do álcool no comportamento do condutor.
Isso sem contar a contradição de depoimentos, conforme o próprio Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu: “Apelação criminal. Crime de trânsito. Teste do bafômetro inexistente. Impossibilidade de comprovação do estado de ebriedade do motorista através de prova indireta, porque, na espécie, há apenas o depoimento de um policial, que não corrobora com as demais testemunhas ouvidas em juízo. Materialidade do crime não comprovada. Absolvição que se impõe” (TJSC, 1ª C. Crim., Apelação criminal n. 2007.053271-1, de Xaxim, rel. Des. Rui Fortes, j. 26/10/2009).
E destacamos uma última consideração: a doutrina utilizada no presente acórdão apresenta-se desatualizada. É suficiente reparar o ano de sua edição. Transcorrida mais de uma década e, em seu intervalo, verificada uma reforma legislativa, seria pertinente o seu esquecimento. Assim, o “salvo melhor juízo” é a parte a ser considerada no acórdão, pois o próprio defensor da tese – ressalte-se, correta antes da reforma legislativa – não mais sustenta sua proposição. Numa entrevista à Carta Forense, questionado sobre a limitação de decigramas para configuração do tipo penal, respondeu: “no momento em que o nível de alcoolemia (seis decigramas de álcool por litro de sangue) foi inserido como elementar do tipo incriminador, tornou-se imprescindível a comprovação cabal dessa dosagem sob pena de atipicidade da conduta. O nível de álcool, por se tratar de medida técnica, necessita de demonstração pericial. Em outras palavras, não se consegue extrair o exato nível de alcoolemia mandando o agente ‘fazer o quatro’ ou ‘dar uma andadinha’. A Lei fala em seis decigramas de álcool por litro de sangue, tornando imprescindível, perdoe-me a redundância, o exame de sangue. Não há como substituir essa prova. O certo é que a prova testemunhal será incapaz de suprir o exame de corpo de delito e qualquer outro exame pericial, que não meça diretamente a concentração de álcool por litro de sangue, tornando dúbia a presença da elementar de natureza objetiva, imprescindível para a configuração do fato típico” [5].
E nessa linha de entendimento destacamos outros julgados:
“Habeas corpus. Embriaguez ao volante. Mero exame clínico genérico. Falta de materialidade. Trancamento da ação penal por justa causa. O tipo penal do art. 306 do CTB exige a comprovação da concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas. O mero atestado médico genérico onde consta ‘hálito etílico no momento do atendimento médico, sugerindo consumo alcoólico. Sugiro nível etílico sérico para confirmação’, embora apto para comprovação da infração administrativa de trânsito, não é suficiente para identificar o teor de concentração de álcool no organismo do motorista superior a seis decigramas, tal como é exigido na descrição da conduta típica. Falta de justa causa para a ação penal. Concederam a ordem. Unânime” (TJRS, 3ª C. Crim., Habeas corpus n. 70037253119, Capão da Canoa, rel. Des. Odone Sanguiné, j. 22/07/2010, DJ 30/07/2010) [6].
“Embriaguez ao volante. Nova redação do art. 306 da Lei n. 9.503/97, que exige concentração de no mínimo 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, a qual só é aferível por meio de exame pericial, o qual não foi realizado. Lei que retroage porque benéfica ao apelante. Inexistindo prova da materialidade, de rigor a absolvição” (TJSP, 1ª C. Crim., Apelação criminal n. 990.08.196386-8, rel. Des. Ericson Maranho, j. 13/08/2009) [7].
“Recurso crime em sentido estrito. Decisão que rejeita a denúncia. Embriaguez ao volante (art. 306 do CTB). Ausência de prova da concentração de álcool por litro se sangue. Inviabilidade de prova exclusivamente testemunhal. Materialidade não comprovada. Decisão correta. Recurso desprovido” (TJPR, 2ª C. Crim., Recurso crime n. 635506-6, Foz do Iguaçu, rel. Des. Miguel Kfouri Neto, j. 22/04/2010)[8].
Ainda a majoritária jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “Apelação criminal. Crime de trânsito. Embriaguez ao volante. Lei n. 11.705/08 mais benéfica ao réu. Ausência de exame técnico imprescindível para a configuração do delito. Absolvição. Apelo ministerial prejudicado. Recurso defensivo provido. A Lei n. 11.705/08 introduziu novo requisito para a configuração do crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, qual seja, a constatação exata do nível de álcool no sangue, dificultando, assim, a caracterização do crime. O condutor que não for submetido ao exame de sangue, ou ao bafômetro, não estará incurso nas iras do art. 306, pois não restará comprovada a materialidade delitiva, vez que ausente prova sobre elementar do tipo penal” (TJMG, 4ª C. Crim., Apelação criminal n. 1.0145.06.318439-7/0001, rel. Des. Herbert Carneiro, DJ 10/07/2009) [9].
Muito recentemente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: “Habeas corpus. Ação penal. Trancamento. Embriaguez ao volante. Ausência de exame de alcoolemia. Aferição da dosagem que deve ser superior a seis decigramas. Necessidade. Elementar do tipo. [...] 2. Com o advento da referida lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a seis decigramas. Ordem concedida” (STJ, Habeas corpus n. 166.377/SP, rel. Min. Og Fernandes, DJ 01/07/2010).
Destacou o relator que a circunstância da quantidade de álcool é uma elementar objetiva do delito que deve ser necessariamente demonstrada por prova pericial e, por conseguinte, não se admite prova indireta ou exame de corpo de delito supletivo. Em termos: “a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue” e isso, parece-nos evidente, não se pode presumir. Por isso repetimos: uma coisa é afirmar que a pessoa está influenciada pelo álcool e outra coisa é dizer a específica quantidade de álcool para fins de comprovação da materialidade. Na esteira do relator, a dosagem etílica passou a ser componente do tipo, sendo que a ausência de comprovação por meio de prova pericial – exame técnico – impossibilita precisar a concentração de álcool [10].
E do Supremo Tribunal Federal em decisão monocrática: “O tipo previsto no art. 306 do CTB requer, para sua realização, concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas por litro de sangue. Parece-me evidente que a imputação delituosa há de ser feita somente quando comprovado teor alcoólico igual ou superior ao previsto em lei. Ora, não tendo sido realizado o teste do ‘bafômetro’, falta, obviamente, a certeza de satisfação desse requisito, necessário, repita-se, a configuração típica” (STF, Habeas corpus n. 100.472, rel. Min. Eros Grau, j. 27/09/2009).
Pelo exposto, frisamos que a comprovação da materialidade delitiva por parte do representante ministerial não pode ser feita por meio de utilização de uma prova testemunhal nos termos da decisão do Superior Tribunal de Justiça que está servindo de modelo de consulta por parte dos Tribunais Estaduais. Ademais, de nada adianta a invocação dos princípios processuais se na colheita de provas a acusação transgride preceitos constitucionais. Assim, a nosso ver, a existência material do fato só poderá ocorrer por meio de exame pericial, sob pena de implicar em nulidade processual.
Cássio Honorato, contudo, integrante do Ministério Público do Estado do Paraná apresentou uma nova tese. Considerando às milhares de mortes em razão de eventos de trânsito propôs a flexibilização do direito do condutor não produzir provas contra a sua pessoa e frisou que as argumentações doutrinárias de primeira hora de que a incidência da punição penal estaria afastada diante da negativa do agente em se submeter ao exame pericial devem ser desconsideradas [11]. Neste contexto sugeriu uma dupla tipicidade na redação do art. 306 da Lei n. 9.503/97, ou seja, a presença de dois crimes na nova redação do tipo penal e comprovados de formas diversas. Vejamos mais detidamente.
Seguindo sua orientação ficará comprovada a materialidade da primeira parte do tipo (até o termo decigramas) por meio do exame de sangue para aferir a concentração mínima de seis decigramas de álcool no tecido sangüíneo ou por meio do bafômetro para constatar concentração mínima de três décimos de miligramas de álcool por litro de ar expelido dos pulmões. Sobre a aplicabilidade da prova pericial teceremos alguns comentários na seqüência do ensaio. Nesse momento prendemos a atenção no inusitado.
O Promotor resolveu inovar destacando que a segunda parte do dispositivo deve ser interpretada de maneira extensiva, para incluir na expressão ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine a dependência, o próprio álcool. Assim, entende que caso o condutor do veículo se negue à realização do exame pericial, o crime pode ser caracterizado pela adequação da conduta à segunda parte da redação, pois o agente estava sob a influência de álcool que, por sua vez, também é considerada substância psicoativa que causa dependência e, por conseguinte, qualquer prova em direito admitida poderá ser utilizada para comprovação, pois no caso não é necessária uma dosagem mínima [12].
Por evidente não há palavras avulsas na lei. Quando o legislador utilizou na segunda parte do tipo penal o termo outros por evidente não quis abranger o álcool, porém justamente o contrário, isto é, enaltecer drogas psicoativas diversas. Ademais, o ordenamento jurídico é conjunto de normas harmônicas e o que o Promotor sustenta é uma desarmonia normativa, pois como tratar a mesma situação de forma diversa? Aliás, decidiu o Tribunal do Paraná: “por outro aspecto, não se pode proceder à interpretação extensiva da norma – ‘ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência’ – que ilustra o art. 306 do CTB. Isso porque, além de analogia in malam partem, o legislador foi específico quanto ao álcool, determinando a quantidade necessária para caracterização do delito” (TJPR, 2ª C. Crim, Recurso criminal n. 635506-8, de Foz do Iguaçu, rel. Des. Miguel Kfouri Neto, j. 22/04/2010).
Nem sempre em direito penal valem os argumentos das autoridades, mas, por vezes, a autoridade dos argumentos, mesmo de primeira hora. Não existem duas normas penais na redação do artigo. Antes de inovar, para também tentar salvar essa infração, deveria este Promotor valer-se da instituição que representa e deflagrar uma bandeira de revogação do presente artigo e proposição de um novo texto, quiçá como o defendemos na seqüência deste trabalho.
Atualmente a infração está presente no plano da existência, mas não no plano da eficácia, pois é improvável – ou mesmo quase impossível – que alguém seja condenado nos moldes deste tipo penal. Aliás, desconhecemos qualquer pessoa que cedeu parte do seu corpo para realização do exame de sangue em mais de dez anos desta lei específica. Faz-se necessária que outra redação não estipule um limite mínimo, mas que somente destaque que o condutor esteja sob o efeito (e não com ‘bafo’) do álcool, sendo possível aferir essa circunstância simplesmente por meio de prova testemunhal.
Por que não é prudente prever um grau mínimo de concentração etílica? Porque assim apenas a prova pericial alcançaria um resultado seguro sobre a embriaguez, sendo impossível equipar aquela a eventual prova testemunhal. Nossa proposta surpreende aos mais críticos, porque é justamente o inverso da atual, isto é, afastamos a prova pericial para contemplar como meio hábil a prova testemunhal, primeiro por ser mais justa, pois antes era possível o condutor do veículo automotor encontrar-se bem para dirigir, mas ter ultrapassado a concentração mínima permitida, o que caracterizaria o crime, e, em segundo lugar, por ser mais segura, porque sendo insuficiente o consumo prévio de álcool, a prova testemunhal será útil para atestar situação de risco proibido criado pelo condutor sob o efeito do álcool. Claro que será necessário a não divergência entre os depoimentos prestados para que essa prova adquira total relevância. Mas essa possível – e até provável divergência – é passível de acontecer em todo processo penal e, por isso, não pode ser óbice a sua aceitação. Além disso, defendemos que a influência do álcool na condução do veículo passe a ser considerada qualificadora dos delitos culposos de trânsito (homicídio e lesão corporal), elevando de forma automática o limite mínimo e o máximo destes crimes quando da aplicação da pena-base.
Enquanto isso não ocorre, analisamos a comprovação da materialidade delitiva por meio da prova pericial, mormente, a (in) constitucionalidade do bafômetro.
3.2. A comprovação da materialidade do delito por prova pericial
Ponto pouco discutido na doutrina [13] e ainda esquecido nos Tribunais Estaduais e Superiores se refere à inconstitucionalidade da utilização do bafômetro para aferição do estado de alcoolemia. O parágrafo único do art. 306 da Lei n. 9.503/97, com redação dada pela Lei n. 11.705/08, determina que “o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”. Como efeito, foi editado o Decreto n. 6.488, em junho de 2008, que prevê no art. 2º a equivalência entre seis decigramas de álcool por litro de sangue e três décimos de miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões.
Entendemos existir três marcantes inconstitucionalidades com esta construção. Primeira: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Lei em sentido estrito, isto é, como resultado do processo legislativo e não da atuação do Poder Executivo. Assim, apenas a título de exemplo, pois inúmeros os precedentes, entendemos incorreto o teor de decisão do Tribunal de Justiça Catarinense: “[...] Diante da vigência da Lei n. 11.705/08, que alterou o texto do art. 306 do Código de Trânsito brasileiro, o teste em aparelho de ar alveolar pulmonar – etilômetro – conhecido como bafômetro, faz-se imprescindível para a comprovação da materialidade do delito, não podendo ser suprido por outros meios de prova” (TJSC, 2ª C. Crim., Apelação criminal n. 2009.064582-5, da Capital, rel. Desª. Marli Mosimann Vargas, j. 08/02/2010).
Há quem possa argumentar que algumas matérias são absolutamente relevantes para a tutela de determinados bens jurídicos – em especial à disponibilidade da vida e/ou da integridade física – e, assim, a remissão a modalidades inferiores de atos normativos não implicaria uma violação do princípio da reserva legal, ainda que provenientes de fontes distintas. Isso por evidente é correto, porém apenas para normas penais em branco, como a lei de drogas. Recorrer ao que algum setor da doutrina denomina de “administrativização da norma penal” [14] só é possível se o juiz necessita lançar mão de outra norma para preencher um tipo penal o que, sem sombra de dúvidas, não é o caso do atual art. 306 da Lei n. 9.503/97.
Ademais, ainda que atualmente se exija a mesma concentração de álcool que antes da reforma legal, isto é, a concentração prevista na antiga redação do art. 276 da Lei n. 9.503/97, o atual tipo incriminador fala apenas de concentração de álcool no sangue. Como a equivalência tem relação com os fins criminais, é evidente que aceitar que o parágrafo único configura um tipo incriminador seria atentar contra o princípio da legalidade. Sob essa fundamentação, em julgado de primeiro grau, o togado catarinense declarou “a invalidade do bafômetro como meio de prova hábil para caracterizar a materialidade do caput, que prescreve como crime seus decigramas de álcool presentes no tecido sanguíneo” (Autos de ação penal n. 023.06.387369-1, da Capital, rel. Juiz Alexandre Morais da Rosa, j. 27/08/2009).
Já destacamos que não deveria ser previsto nenhum tipo de concentração ou de quantidade de álcool na redação legal em razão da dificuldade de se realizar a prova, mas como assim procedeu, também cumpria ao legislador destacar expressamente no tipo penal o quantum de álcool expelido pelos pulmões necessário a caracterização do delito. Aliás, são poucos os que observaram outra inconstitucionalidade, pois a questão probatória foi remetida ao Poder Executivo sendo que, com uma simples leitura da Carta Constitucional, depreende-se que a competência para legislar sobre matéria processual é exclusiva do Poder Legislativo (art. 22, I). É suficiente para exemplificar: “ao enrijecer o próprio tipo penal inserindo na norma penal incriminadora o grau de concentração de álcool por litro de sangue, o legislador limitou qualquer procedimento de ampliação típica. Mas, ainda que se admitisse uma extensão, tal somente poderia ser realizada por quem detém a legitimidade constitucional para tanto, em decorrência natural do princípio da reserva legal. Dito de outra forma, o legislador não poderia conceder à Administração a absoluta liberdade para estabelecer em quais hipóteses e circunstâncias em que o tipo penal fechado poderia ser ampliado” (Autos de ação penal n. 050.09.02604-5, da Capital, rel. Juiz Marcos Zilli).
Por isto, impossível dizer que a submissão voluntária ao bafômetro é relevante para fins de prova criminal. Violações ao princípio da reserva legal, da legalidade e da separação de poderes não podem ser compensadas pelo comportamento do agente. Em termos simples: a ação do condutor em realizar o teste do bafômetro não mascara a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 306 da Lei n. 9.503/97 ainda que parte da doutrina defenda essa possibilidade e alguns Tribunais a ela se filiem como tivemos oportunidade de destacar [15].
3.3. A negativa de produção de prova em prejuízo próprio
Repetimos que o princípio de que ninguém é obrigado a agir em prejuízo próprio, previsto no Pacto de San José da Costa Rica, ainda não teve seu significado aniquilado, devendo ser tratado como uma garantia fundamental de todos os cidadãos. As teses dos Tribunais reconhecendo a inconstitucionalidade das decisões em contrário ao nemo tenetur se detegere aplicam-se perfeitamente ao caso. Aliás, segue precedente do Superior Tribunal de Justiça: “é inconstitucional qualquer decisão contrária ao princípio, o que decorre da inteligência do art. 5º, LXIII, da Constituição da República e art. 8º, § 2º, g, do Pacto de São José da Costa Rica. Precedentes” (STJ, 6ª Turma, Recurso em Mandado de Segurança n. 18.017/SP, Min. Paulo Medina, DJ 02/05/2006).
Entretanto, em estudo sob a firma de Juliana Pereira Coutinho e sua assessora [16], ambas do Departamento da Polícia Rodoviária Federal, outro enfoque foi apresentado. Aduziram que a tutela dos direitos coletivos está acima da proteção dos direitos individuais, não se confundindo e sim se sobrepondo aos aludidos direitos de presunção da inocência e proibição de auto-incriminação, isto é, que as garantias individuais (art. 8º, § 2º) devem ser limitadas se colidirem com interesses coletivos (art. 32). Concluíram pela legalidade de utilização do bafômetro e obrigatoriedade do condutor se submeter ao teste, sendo que sua recusa enseja punição pelo crime de desobediência. Este estudo foi balizado pela Advocacia Geral da União, com recomendação de Maria de Lourdes de Oliveira para que sejam alertadas as Regionais que em caso de descumprimento do teste o condutor seja enquadrado no art. 330 do Código Penal.
Destacamos: “Nota-se então que o próprio Pacto [...] pôs limitações ao exercício dos direitos por ele também previstos. Assim, o exercício de um direito fica limitado à preservação dos direitos das demais pessoas, da segurança de todos e as justas exigências do bem comum [...]”. “Não obstante a importância dos direitos fundamentais, eles não podem ser entendidos em sentido absoluto, em face da natural restrição resultante do alcance do bem comum”. “Impedir a Administração de utilizar-se dos meios disponíveis e legais para fiscalizar a situação dos condutores é tornar a Lei inócua prejudicando sua própria razão de ser, qual seja, evitar óbitos no trânsito [...]”.
Por evidente há um núcleo de autonomia individual inatacável que deveria ser sempre preservado para o exercício da dignidade humana. Ocorre que esse núcleo é mínimo nas condutas de trânsito porque na ponderação entre o interesse de liberdade civil e a proteção de bens jurídicos, prevalece o último. Tolhe-se o núcleo de liberdade imponderável, pois, embora não seja proibido beber, é proibido beber em demasia e depois se colocar na direção de um veículo, pois, assim, cria-se um risco manifesto para o bem jurídico. Existe redução da liberdade, mas com ganho social, porque reduzido o grau de domínio do agente pela ingestão de álcool, a disponibilidade da vida alheia restará em maior grau protegida.
Esse mesmo pensamento é externado no estudo acima destacado. No entanto, a intervenção na esfera privada em nome de um interesse coletivo não é automática, mas pode ser justificada. Desta forma é preciso delimitar quando isso pode acontecer. Diante deste quadro entendemos importante dizer, antes de tudo, que “a legitimidade dos fins não justifica a ilegalidade ou inconstitucionalidade dos meios cuja adoção se entenda necessária a consecução dos objetivos visados, por mais elevados, dignos e inspirados que sejam” (STF, ADPF n. 144, rel. Min. Celso de Mello, DJ 26/02/2010) ou que “não se pode tolerar violação de direito fundamental em nome do resultado” (Autos de ação penal n. 023.09.039518-5, da Capital, Juiz Alexandre Morais da Rosa, j. 26/08/2009).
Isso significa que a intervenção apenas é legítima quando realizada no limite da legalidade, entendida no aspecto processual e penal. E simultaneamente à legalidade vincula-se a idéia de proporcionalidade, pois do contrário, em nome de um interesse coletivo, até a prática da tortura será permitida. Vê-se que uma tentativa sem limites de salvar o preceito significa encobrir uma deficiência do legislador e, ao mesmo tempo, autorizar outros absurdos, pois segundo o estudo deverá prevalecer o interesse público a todo preço. Depreende-se a seguinte mensagem: legisle como bem entender porquanto o bem comum estará a sua disposição.
E sob aplausos da Advocacia-Geral da União exigiram punição pelo crime de desobediência a quem se negar a realização do teste, ignorando entendimento pacífico dos Tribunais Superiores conforme o qual o crime contra a Administração Pública não se caracteriza quando a lei prevê pena de natureza civil ou administrativa, sem ressalvar expressamente a aplicação cumulativa com a pena prevista no próprio tipo (art. 330). Do Supremo Tribunal Federal: “Habeas corpus. Crime de desobediência. Atipicidade. Motorista que se recusa a entregar documentos à autoridade de trânsito. Infração administrativa. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que não há crime de desobediência quando a inexecução da ordem emanada de servidor público estiver sujeito à punição administrativa, sem ressalva de sanção penal. Hipótese em que o paciente, abordado pelo agente de trânsito, se recusou a exibir documentos pessoais e do veículo, conduta prevista no Código de Trânsito como infração gravíssima, punível com multa e apreensão do veículo (art. 238)” (STF, Habeas corpus n. 88.452, rel. Min. Eros Grau, j. 02/05/2006).
Satisfaz a conclusão de Sylvia Steiner: “[...] decorrência lógica do princípio da presunção de inocência, o direito ao silêncio, se exercido pelo acusado, não pode gerar qualquer presunção em seu desfavor. Não se concebe um sistema de garantias no qual o exercício de um direito constitucionalmente assegurado pode gerar sanção ou dano [...]. [...] Os preceitos garantistas constitucional e convencional conduzem à certeza de que o acusado não pode ser de qualquer maneira compelido a declarar contra si mesmo, ou a colaborar com a colheita de provas que possam incriminá-lo” [17].

[1] PATARO, Oswaldo. Medicina legal e prática forense. São Paulo: Saraiva, 1976.
[2] ZACHARIAS, Manif; ZACHARIAS, Elias. Dicionário de Medicina Legal. Curitiba: Educa, 1998.
[3] MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1998.
[4] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
[5] CAPEZ, Fernando. Jornal Carta Forense, segunda feira, 4 de agosto de 2008.
[6] Desta Instância de Controle, com idêntico posicionamento: “Habeas corpus. Crime de trânsito. Trancamento da ação penal por ausência de justa causa. Inexistência de prova técnica da concentração de álcool no sangue. Assim, inexistindo prova técnica acerca do teor alcoólico do sangue do paciente à época dos fatos, inviável a comprovação da materialidade do delito através de provas indiretas (testemunhas)” (TJRS, 3ª C. Crim., Apelação criminal n. 70030686836, de Cachoeira do Sul, rel. Des. Odone Sanguiné, j. 27/08/2009, DJ 02/09/2009). Ou: “Lei n. 9.503/97. Código de Trânsito Brasileiro. CTB. Art. 306. Embriaguez ao volante. O tipo penal em estudo refere, expressamente, o teor alcoólico a partir do qual a ação é considerada criminosa. Ausente demonstração da materialidade, cuja única alternativa é consagrada pela própria Lei, falta elemento indispensável para o regular desenvolvimento da ação penal” (TJRS, 3ª C. Crim., Apelação criminal n. 70036534303, de Porto Alegre, rel. Des. Ivan Bruxel, j. 24/06/2010).
[7] Desta Corte de Justiça, com idêntico posicionamento: “No caso vertente, o apelante não teve aferida a graduação alcoólica por litro de sangue, por meio de exame químico toxicológico ou por etilômetro, aparelho de ar alveolar conhecido como ‘bafômetro’, o que seria necessário, pois assim exige o atual Código de Trânsito Brasileiro. O laudo pericial juntado ao feito se limitou ao exame clínico a que se submeteu o apelante, sendo, portanto, imprestável para comprovar a materialidade do delito, daí por que a absolvição do apelante é medida que se impõe” (TJSP, 1ª C. Crim, Apelação criminal n.990.09.146828-2, de Cachoeira Paulista, rel. Des. Mario Devienne Ferraz, j. 19/10/2009).
[8] Deste Tribunal de Justiça, com idêntico posicionamento: “Embargos de declaração. Omissão. Acórdão que negou provimento ao recurso em sentido estrito. Rediscussão da matéria de mérito. Caráter infringente. Inadmissibilidade. Delito de embriaguez. Prova técnica. Necessidade. Os embargos de declaração não têm a finalidade de devolver a matéria para reexame visto que o efeito modificativo é excepcional e previsto apenas para os casos de manifesto equívoco no julgado. A caracterização do delito de embriaguez ao volante, tendo em vista a nova redação do art. 306 dada pela Lei n. 11.705/08, exige a quantidade igual ou superior a de 0,6 dg de álcool por litro de sangue, podendo esta somente ser aferida mediante prova técnica. Embargos rejeitados” (TJPR, 2ª C. Crim, Embargos de declaração n. 0603835-7/01, de Foz do Iguaçu, rel. Des. Noeval de Quadros, j. 18/02/2010). Ainda: “Apelação criminal. Conduzir veículo automotor, na via pública, com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 306 da Lei n. 9.503/97, alterado pela Lei n. 11.705/2008). Não comprovação do índice de teor alcoólico no sangue. Absolvição decretada. Com a nova redação do art. 306 da Lei n. 9.503/97 atualmente exige-se a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas para a configuração do crime” (TJPR, 2ª C. Crim., Apelação criminal n. 477559-5, rel. Des. Noeval Quadros, j. 25/09/2008). “Apelação crime. Sentença condenatória. Embriaguez ao volante. Não existência de prova técnica. Exegese do art. 306 da Lei n. 9.503/97, alterado pela Lei n. 11.705/2008. Retroatividade da lei penal mais benéfica. Inteligência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal. Extinção da punibilidade” (TJPR, 4ª C. Crim., Apelação criminal n. 0533118-8, de Palotina, rel. Des. Domingos Perfetto, j. 11/03/2010).
[9] Igualmente, deste Tribunal: “Apelação criminal. Art. 306 da Lei n. 9.503/97. Materialidade não comprovada. Absolvição. Inexistindo meios de comprovar a materialidade do delito previsto no art. 306 da Lei n. 9.503/97, com a nova redação dada pela Lei n. 11.704/08, é de se absolver o apelante por ausência de prova de existência do fato considerado criminoso. Provimento do recurso que se impõe” (3ª C. Crim., Apelação criminal n. 1.0349.07.017109-6, rel. Des. Antônio Carlos Cruvinel, DJ 27/05/2009).
[10] Concordamos parcialmente com esse julgamento, visto que o Ministro relator entende que a prova da concentração de álcool no organismo do condutor pode ser realizada de duas maneiras: por exame de sangue ou teste de aparelho alveolar. Nossa restrição diz respeito ao último procedimento, pois o entendemos inconstitucional.
[11] Honorato, Cássio Mattos. “Dos Crimes de Embriaguez ao Volante e as Alterações Introduzidas pela Lei n. 11.705/08”, in pós-graduação de Direito de Trânsito na Faculdade Uniban, campus São José-SC.
[12] Parte da doutrina penal afirma que no preceito se identificam duas hipóteses, mas sem a ampliação excessiva dada por Cássio Honorato. Por todos, por exemplo: Marcão, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009, para quem à persecução penal na segunda parte do artigo é imprescindível de prova pericial, sendo suficiente a produção de prova oral. E como resolver a situação na qual o agente simultaneamente se embriaga e consome drogas?
[13] Nossa contribuição: BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal de Trânsito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[14] SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal. Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2006.
[15] MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009.
[16] COUTINHO, Juliana Pereira. Anexo I. Análise acerca da Legalidade do uso do Etilômetro. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Rodoviária Federal. Consultoria Jurídica.
[17] STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direito Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2001.

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