sexta-feira, 18 de março de 2011

Bafômetro: não me calo!


Recentemente postei no blog que o STJ, agora pelo Ministro Celso Limongi, Desembargador convocado do TJSP, entendeu que é possível a utilização do bafômetro para aferição da materialidade delitiva do art. 306 do CTB. Como o acórdão já está disponível, resolvi passar os olhos na decisão. Desconsiderando o relatório, sobraram 6 páginas de "fundamentação". Com a citação de doutrina e de precedentes jurisprudenciais, de fato, há duas páginas produzidas. E nessa última redução, algumas transcrições do acórdão do Tribunal de origem e do parecer ministerial. Do que li, confesso, nada agradou. Vou enumerar minhas insatisfações.

1) Inicia o relator perguntando se a demonstração da quantidade de álcool no sangue de uma pessoa (condutor) pode ser aferida pelo etilômetro (vulgo: bafômetro). Presumo, portanto, que essa é a tese principal a ser analisada. Como resposta valeu-se do que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul asseverou no julgamento da apelação e concluiu positivamente. No pouco que fundamentou, a meu ver, o fez de forma incorreta.

1.1) Recorreu em um primeiro momento ao art. 277 do CTB que está inserido dentro do capítulos das medidas administrativas. Sabemos que há duas infrações relacionadas à embriaguez: uma de perfil administrativo e outra de cunho penal. Segundo a Lei n. 9.503/97, com algumas modificações processadas pela Lei n. 11.705/08, as medidas administrativas são aplicáveis às infrações administrativas.

A primeira infração (de natureza administrativa) está prevista no art.165 do CTB. Quem tiver a ousadia de abrir a lei constatará que o parágrafo único do último preceito citado é claro em sua redação: "a embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277". Ademais, também aqueles que tiverem força de vontade para passar os olhos em todo o art. 277 verificarão que o legislador em seu § 2 foi expresso ao destacar que "a infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas". Basicamente o art. 277 tem relação com a prova testemunhal, pois não há discussão em relação à possível utilização do etilômetro quanto à infração do art. 165. Assim, quando o condutor se negar a realização do exame pericial (incluído o bafômetro) os policiais responsáveis pela diligência poderão constatar que aquele está conduzindo sob a influência do álcool por qualquer outro meio. Depois, os seus depoimentos irão embasar o laudo e este será apto para futura punição administrativa.

Assim, em sintese: a) para efeitos penais, recorrer ao art. 277 é incorreto em razão de sua posição arquitetônica no CTB; e, b) como o art. 277 se refere à possibilidade de utilização da prova testemunhal, não haveria nem razão de ser citado, porque o próprio relator limitou a "fundamentação" do seu voto aquela questão inicial, ou seja, será possível utilizar o aparelho de bafômetro para fins criminais?

1.2) Depois o relator fez menção ao art. 306, parágrafo único, do CTB que determinou ao Poder Executivo Federal que etipulasse a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia. E aí citou o Decreto n. 6488/08 que assim procedeu. Por evidente, ao falar de utilização do bafômetro, está-se a referir de matéria probatória. Agora, pergunto: a quem compete em nosso país legislar sobre processo penal? Amigo, tendo um tempinho, abra um livro chamado Constituição Federal e leia o art. 22, I. Lá não estará escrito que o Presidente tem essa competência. Quem entre nós legisla é o Poder Legislativo. Todavia, como se trata de matéria que afronta a CF, a competência de análise é do STF. Mas apenas quis deixar claro que esse Decreto, lembrado pelo relator, a princípio, é inconstitucional.

2) Depois há citação doutrinária para destacar que o crime é de perigo abstrato. Considerações mais aprofundadas não são apresentadas. Em sintese, EU digo que nesse tipo de delito uma lesão ou uma concreta colocação em perigo do bem jurídico é estranha ao preceito normativo. O fundamento da punição está vinculado a mera desobediência à vigência da lei (aqui, puro Gunther Jakobs). Nem irei me debater sobre essa questão. Já fiz em outros momentos e o farei em tantos outros ainda. Passo a destacar as jurisprudências colacionadas na sequencia do voto.

2.1) O primeiro precedente utilizado visou fundamentar ou reforçar a corrente seguinta pelo Min. Celso Limongi, qual seja, que o art. 306 do CTB é um crime de perigo abstrato. Pois bem, textualmente o que verifico é que a decisão por ele usada segue posição contrária. Textualmente: "ausente o dano potencial à coletividade, o fato será atípico penalmente, subsistindo, apenas, a responsabilidade administrativa, para a qual basta o perigo abstrato" (Habeas Corpus n. 153.311, rel. Min. Gilson Dipp, DJe 18/10/2010).

2.2) Outro precedente citado está viciado. Como assim? Na parte que discuto, a Ministra Laurita Vaz fez menção ao processo RHC 26.432/MT, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 22/02/2010 no qual este togado aderiu de modo expresso ao parecer ministerial (que se valeu de outro julgado do STJ) no qual a fundamentação APENAS se valheu de legislação NÃO MAIS ESTAVA VIGENTE. Quem duvida do que estou falando, por favor, consultar com toda a atenção um antigo post destacado nesse blog e abaixo referido:


Quero acreditar que a Ministra Laurita e sua equipe passaram os olhos em todo o julgado referido, porém confesso minha descrença. Ficaram apenas na ementa. Eu, contudo, analisei todo o julgado e os precedentes nele citados. O vírus preguicitum lectura de voctum não me atingiu. Porém, nota-se que a contaminação é evidente. No link citado eu me pronunciei a respeito e tive a colaboração do magistrado Alexandre Moraes da Rosa ao torná-la pública no último congresso do IBCCRIM realizado em São Paulo. O espanto foi geral!

2.3) Outro precedente é justamente da lavra do Min. Napoleão Nunes Maia Filho (Habeas corpus n. 151,087/SP, DJe 26/04/2010). Ele igualmente se valeu de anteriores e incorretas decisões do STJ, como, por exemplo, o Recurso em Habeas corpus n. 20.129/MT, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 04/06/2007. Atentem à data de publicação desta decisão. Ela é anterior à reforma legislativa que se operou na Lei de Trânsito. Pergunto: isso não impressiona? Ademais, quem ler a decisão em sua integralidade descubrirá que seu conteúdo está relacionado à possibilidade de aferição da materialidade por exame clínico (leia-se, prova testemunhal). Acaso alguém tenha esquecido a tese principal do Min. Celso Limongi, eu recordo: ele pretende saber da possibilidade de utilização do bafômetro!

3) Depois desse carnaval, o relator denegou a ordem, pois como o condutor fez voluntariamente (soprou o aparelho do bafômetro) ele mesmo deu sustentação para o oferencimento da futura denúncia, uma vez que a concentração de álcool supera o limite equivalente previsto no Decreto referido. Mas mesmo esse comportamento voluntário não mascara a inconstitucionalidade do uso da prova pericial coletada. Cabe ao defensor propor novos habeas, agora ao STF, para que esse se manifeste sobre a violação do art. 5, II e do art. 22, I, de nossa Constituição. O que o relator fez foi reparar a omissão expressa no preceito incriminador do art. 306 que não demonstra o grau mínimo de álcool nos pulmões para aferição da materialidade delitiva. Mas isso não podiii!!!

4) Minha preocupação reside na falta de critério para escolha de precedentes a fim de justificar um ponto de vista. Abre-se a ferramenta de busca do respectivo tribunal, jogam-se as palavras chaves, e o que aparecer copia-se e cola-se. Nem leitura fazem. Não há a mínima cautela em analisar eventual contradição entre a doutrina citada e o precedente utilizado para reforçá-la, ou entre o que se questiona em um voto e o que os demais julgados realmente apresentam como matéria de fundo. Devo dizer que atualmente não tenho vínculo nem com o Judiciário e nem com a prática da advocacia. Somente procuro fazer o que as escolas européias por seus professores voltados à pesquisa realizam: um trabalho de investigação e análise sério dos julgados dos Tribunais Superiores. Enquanto o STF não se manifestar sobre a possível inconstitucionalidade do preceito com certeza NÃO ME CALAREI!

2 comentários:

  1. "O vírus preguicitum lectura de voctum". Essa foi na veia! hehe

    Vou tomar aqui minha vitamina C também. Abraço!

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  2. Baita post. Mostra como as coisas são feitas. Não dá!!!!! E tem gente que compra a embalagem da ementa e sai decidindo com base em legislação revogada. O caos!!! Parabéns...

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