Já estou meio tonto, mas continuo invocando a atenção de todos para a seguinte ementa de origem catarinense da lavra do Desembargador Irineu João da Silva:
“Crime de embriaguez ao volante. Art. 306 da Lei n. 9.503/97. Necessidade de dar interpretação hermenêutica à Lei n. 11.705/2008, para atender aos seus próprios fins. Ausência de teste do bafômetro. Estado etílico que pode ser demonstrado por outras provas. Recurso ministerial provido. Ao operador do direito, atento as incongruências do legislador, outra solução não resta do que lançar mão da hermenêutica jurídica para decifrar a vontade da lei em face da realidade do país e da necessidade de impor mais rigor aos infratores das normas de trânsito” (TJSC, 2ª C. Crim., Apelação criminal n. 2009.007530-3, de Seara, rel. Des. Irineu João da Silva, j. 19/05/2010).
Acompanhado por unanimidade de seus pares, mencionou no corpo do texto de sua decisão que “considerar imprescindível o exame pericial para aferição da tipicidade do crime do art. 306 do Código de Trânsito seria atentar contra vários princípios do processo penal brasileiro e, inclusive, contra a lógica”. Para fundamentar valeu-se de Fernando Capez e Victor Gonçalves:
“[...] a ausência do teste de bafômetro e do exame de sangue não afasta a possibilidade de comprovação da ebriedade por outros meios, pois é sabido que podem ser supridos pelo exame clínico feito pelo médico, que atesta ou não o estado de embriaguez, verificando o comportamento do sujeito através de sua fala, seu equilíbrio, seus reflexos, etc. Na falta desses exames, a jurisprudência tem admitido a prova testemunhal [...]” (Capez; Gonçalves, 1999).
E particularmente complementou para, ao final, concluir:
“[...] e, isso, salvo melhor juízo, mesmo depois da promulgação da Lei n. 11.705/2008”
“[...] donde se conclui, na linha esboçada pela doutrina, que, fiel ao que prescreve o art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro, aplicando-se aos crimes de trânsito as normas gerais do Código de Processo Penal, nas infrações que deixam vestígios, indispensável o exame de corpo de delito (art. 158); sendo ele impossível, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta (art. 167)”.
Uma vez mais destaco que a negativa do condutor na realização do exame pericial não pode ser suprida simplesmente com a aplicação do art. 167 da Lei Adjetiva, pois, do contrário, a exceção passará a ser a regra geral. É necessário levar a sério a normativa processual brasileira.
No meu entendimento, o que atenta contra a lógica é o Desembargador tentar buscar uma equiparação entre as provas testemunhal e pericial. Aguardo suas respostas: cada agente de trânsito equivale a quantos decigramas de álcool por litro de sangue? Quantos policiais são necessários para aferir o percentual alcoólico? Qualquer perito, por mais competente que seja, só com um olhar, sendo decididamente responsável, jamais conseguirá atestar se a concentração de álcool no organismo do agente alcança o nível de intensidade exigido no texto legal. Como afirmar, livre de imprecisão, que o condutor está com sete ou cinco decigramas de álcool por litro de sangue? Em sendo assim, que justiça é essa em que o condutor que estiver bem perante o policial, mas com taxa de álcool superior a permitida em lei continuará em liberdade, mas aquele que pouco bebeu e se apresenta tonto por qualquer circunstância ou mesmo pela bebida, pode ser preso em flagrante?
Atentem, por favor, ilustre julgador e sua equipe de assessores, que com a modificação da legislação de trânsito, o imprescindível passou a ser a comprovação do quantum de álcool presente no sangue do condutor. No entanto, erroneamente, vocês se valeram da prova testemunhal para comprovar o que não é exigido na lei, ou seja, a influência do álcool no comportamento do condutor.
Ainda destaco um último comentário à decisão do magistrado integrante da Corte Sulista. A doutrina por ele utilizada no presente acórdão apresenta-se desatualizada. É suficiente reparar o ano de sua edição (1999). Transcorrida mais de uma década e, em seu intervalo, verificada uma reforma legislativa, seria pertinente o seu abandono. Assim, o “salvo melhor juízo” extraído desta decisão é a parte a ser realmente considerada, porquanto o próprio defensor da tese – ressalte-se, correta antes da reforma legislativa – não mais sustenta sua proposição. Longe de alegar má fé de quem julgou, mas alegando a total falta de conhecimento e atualização, informo que em uma entrevista à Carta Forense, questionado sobre a limitação de decigramas para configuração do tipo penal, Capez respondeu:
“No momento em que o nível de alcoolemia (seis decigramas de álcool por litro de sangue) foi inserido como elementar do tipo incriminador, tornou-se imprescindível a comprovação cabal dessa dosagem sob pena de atipicidade da conduta. O nível de álcool, por se tratar de medida técnica, necessita de uma demonstração pericial. Em outras palavras, não se consegue extrair o exato nível de alcoolemia mandando o agente ‘fazer o quatro’ ou ‘dar uma andadinha’. A Lei fala em seis decigramas de álcool por litro de sangue, tornando imprescindível, perdoe-me a redundância, o exame de sangue. Não há como substituir essa prova. O certo é que a prova testemunhal será incapaz de suprir o exame de corpo de delito e qualquer exame pericial, que não meça diretamente a concentração de álcool por litro de sangue, tornando dúbia a presença da elementar de natureza objetiva, imprescindível para a configuração do fato típico” (04/08/08).
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