sábado, 10 de setembro de 2011

Esterilização irregular

Por votação majoritária, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou, nesta quinta-feira (8), o deputado federal Asdrúbal Mendes Bentes (PMDB-PA) pela prática do crime de esterilização cirúrgica irregular, previsto na Lei de Planejamento Familiar (artigo 15 da Lei 9.263/1996), à pena de reclusão de três anos, 1 mês e 10 dias, em regime inicial aberto, mais 14 dias-multa, no valor unitário de um salário-mínimo.


Os efeitos da condenação serão regulados no momento da execução da pena, após o trânsito em julgado da condenação. A decisão foi tomada no julgamento da Ação Penal (AP) 481, relatada pelo ministro José Antonio Dias Toffoli. De acordo com a denúncia formulada pelo Ministério Público Federal (MPF) e ratificada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no período entre janeiro e março de 2004, que antecedeu as eleições municipais daquele ano, o então candidato a prefeito de Marabá (PA), deputado Asdrúbal Bentes, com o auxílio de sua companheira e sua enteada, teria utilizado a Fundação “PMDB Mulher” para recrutar eleitoras mediante a promessa de fornecer gratuitamente a realização de cirurgias de laqueadura tubária.


Ainda conforme a denúncia, as eleitoras teriam sido aliciadas, cadastradas e encaminhadas ao Hospital Santa Terezinha, naquela cidade paraense, onde teriam se submetido à intervenção cirúrgica denominada laqueadura tubária, sem a observância das cautelas estabelecidas para o período pré e pós-operatório, tanto no que diz respeito a cuidados médicos quanto àqueles referentes ao planejamento familiar. Da denúncia consta, também que, como o hospital mencionado não era credenciado junto ao SUS para a realização de laqueadura tubária, teriam sido lançados dados falsos nos laudos exigidos para a emissão de Autorizações de Internação Hospitalar (AIH), nos quais constavam intervenções cirúrgicas de outra espécie, para cuja realização o hospital era autorizado pelo SUS. Posteriormente, preenchidos os documentos ideologicamente falsos, o referido hospital teria recebido verba do SUS correspondente ao pagamento dos serviços supostamente prestados. O procurador-geral afirmou, entretanto, que investigações realizadas junto a pacientes que passaram por cirurgia de laqueadura de trompas no Hospital Santa Terezinha mostraram que as incisões nelas verificadas confirmaram tal operação, desmentindo a realização de cirurgia de outra espécie cobrada do SUS, pois esta comportaria uma incisão e consequente cicatriz no abdômen, inexistente nas pacientes analisadas.


Domínio de fato


Ao pedir a condenação do deputado pelos delitos mencionados, o procurador-geral da República disse que crimes praticados em contexto eleitoral são dissimulados, não ocorrendo às claras, sendo impossível colher prova direta de sua autoria, mas neles a idealização é clara. No caso presente, observou Roberto Gurgel, o deputado, criador e mantenedor da Fundação PMDB Mulher, teria sido o mentor das ações de sua companheira, de sua enteada e de um candidato a vereador, também do PMDB, no aliciamento de mulheres para votar nele em troca da laqueadura tubária, bem como de parte da equipe médica do Hospital Santa Terezinha. Ele disse que, embora não seja possível apontar a prática de aliciamento direto de eleitores por parte do deputado, aplica-se ao caso a teoria do domínio de fato. De acordo com essa teoria, segundo o procurador-geral, é autor do crime quem tem o poder de decisão sobre o fato. Assim, seria também o deputado o chefe da quadrilha que praticava os crimes mencionados, sendo ele o autor intelectual e coordenador dos demais agentes. Segundo o procurador-geral, a certeza da autoria deve ser extraída do contexto comprobatório, da análise conjunta de todas as provas colhidas. “As provas que instruem os autos não deixam dúvidas de que o denunciado é o mentor da cooptação de votos”, afirmou Roberto Gurgel, ao pedir a condenação do deputado.


Ausência de crime


O advogado João Mendonça de Amorim Filho, na defesa do parlamentar, afirmou que a denúncia do MPF se baseou unicamente em “inquérito policial caricato”, cujo caráter, segundo ele, é “meramente informativo”, uma vez que conduzido sem contraditório. Segundo o advogado, não há o crime previsto no artigo 299 do Código Eleitoral, porquanto os fatos narrados na denúncia se referem ao período pré-eleitoral, de janeiro a março de 2004, quando Bentes sequer era candidato. Isto porque, prossegue o advogado, o crime de aliciamento de votos somente pode ocorrer no período que vai do registro da candidatura até a data da eleição, inclusive. E, no caso, o suposto crime descrito na denúncia se refere ao período ocorrido entre janeiro e março de 2004, sendo que o registro da candidatura somente se deu em junho daquele ano.


Segundo o defensor do deputado, o que se aplica ao caso é o princípio da verdade real, que só admite prova material de autoria. E esta, observou, não existe relativamente aos crimes imputados ao deputado. “Indícios não são suficientes para presumir consumado o crime do artigo 299 do Código Eleitoral”, afirmou ele. O mesmo se aplica, ainda conforme o advogado do deputado, à imputação do crime de formação de quadrilha. Tampouco, ainda segundo ele, há prova material de que estaria envolvida uma enteada, porquanto ele não é formalmente casado com sua companheira. Do mesmo modo, por isso mesmo, tampouco haveria a figura de genro de enteada. Quanto aos demais crimes - estelionato e realização de procedimentos em desacordo com as normas de saúde e de planejamento familiar -, ele disse que o parlamentar nada tem a ver com eles, pois são de alçada estritamente médica ou administrativa, isto é, referem-se à equipe médica e administrativa do Hospital Santa Terezinha e estão fora do alcance do parlamentar.


Voto do relator, ministro Dias Toffoli


Inicialmente, o ministro Dias Toffoli rejeitou a preliminar sustentada pela defesa de que Asdrúbal Bentes não poderia ser incriminado, pois, à época dos fatos (entre janeiro e março de 2004), ainda não era oficialmente candidato do PMDB ao cargo de prefeito municipal de Marabá (PA). Em seguida, passou a analisar cada crime imputado a Asdrúbal Bentes: corrupção eleitoral, esterilização irregular de mulheres, estelionato e formação de quadrilha. Em relação aos crimes de corrupção eleitoral, estelionato e formação de quadrilha, foi declarada a prescrição da pretensão punitiva do Estado pelo fato de o deputado eleitoral ter mais de 70 anos. Por conta disso, a ação penal foi julgada procedente parcialmente. Em relação ao crime de esterilização cirúrgica irregular, Bentes foi condenado à pena de 3 anos, 1 mês e 10 dias em regime inicial aberto. Também foram aplicados 14 dias-multa, sendo cada dia-multa arbitrado em um salário mínimo.


Corrupção eleitoral


De acordo com o relator, o artigo 299 do Código Eleitoral, que dispõe sobre o crime de corrupção eleitoral, não contém nenhum marco temporal para que a prática seja caracterizada, não havendo qualquer exigência relativa ao fato de o candidato já ter sido escolhido em convenção partidária. “Para a caracterização do crime em apreço, impõe-se a vontade dirigida ao fim colimado no preceito da norma incriminadora, ou seja, a vontade livre e consciente do agente em corromper - dando, oferecendo, prometendo vantagem para obter o voto dos eleitores. Em outras palavras, o dolo específico visando a essa finalidade espúria”, afirmou Dias Toffoli. O relator ressaltou que, em depoimento, o próprio deputado afirmou que deu orientações para que os “encaminhamentos das mulheres ao Hospital Santa Terezinha” fossem interrompidos depois que seu nome foi escolhido em convenção, o que ocorreu em junho. Embora tenha sido reconhecido o cometimento do crime, incidiu a prescrição.


Esterilização irregular


O relator considerou caracterizada a participação indireta de Bentes no crime de esterilização cirúrgica irregular previsto na Lei 9.263/96 por cinco vezes, já que as testemunhas afirmaram que não foram orientadas sobre métodos alternativos de contracepção nem sobre os riscos do procedimento. A lei prevê um prazo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o procedimento cirúrgico, período em que a mulher interessada terá acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce. “Pelos mesmos motivos que ensejaram o reconhecimento da participação do denunciado no crime de corrupção eleitoral, chego à conclusão de que, em relação ao presente delito, igualmente concorreu o réu para a prática irregular dessas cirurgias. Não é crível que pudesse ele desconhecer o tipo de procedimento que ofereceu e propiciou às eleitoras já referidas, porquanto era essa exatamente a ‘dádiva’ ofertada às mulheres que foram abordadas em seu reduto eleitoral para cooptar-lhes o voto em seu favor”, disse o ministro Dias Toffoli acrescentando que, como deputado federal e advogado, Bentes não poderia desconhecer a irregularidade. Pelo cometimento deste crime, o relator propôs a condenação a 3 anos, 1 mês e 10 dias, além de 14 dias-multa. O relator propôs a conversão da pena em pecúnia (100 salários mínimos) e ainda a inelegibilidade de Bentes pelo prazo da pena.


Estelionato


Embora o relator tenha concluído pela materialidade do crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal), com o agravante de ter sido cometido contra a entidade de direito público (SUS), foi declarada a prescrição da pretensão punitiva deste delito, pelo fato de Asdrúbal Bentes ter mais de 70 anos. O ministro salientou que, como o Hospital Santa Terezinha não era credenciado pelo SUS para fazer laqueadura de trompas, as Autorizações para Internação Hospitalar (AIH) era fraudadas de modo a permitir o reembolso dos procedimentos. Para o ministro Dias Toffoli, ficou claro a “economia” feita pelo político, que comprou votos com dinheiro público. À época dos fatos, o reembolso de cada laqueadura variava entre R$ 200,00 a R$ 369,00.


Formação de quadrilha


O relator considerou caracterizada a ocorrência do crime de quadrilha ou bando, previsto no artigo 288 do Código Penal, mas, também em razão da idade de Bentes, foi declarada a prescrição. Para o ministro Dias Toffoli, ficou evidente que o grupo atuava com divisão específica de tarefas, com um propósito comum: a captação ilícita de votos. Segundo o relator, Asdrúbal Bentes era “o líder oculto” do grupo, pois se utilizava de prepostas pessoas para obter vantagem eleitoral.


Revisor, ministro Luiz Fux


No mesmo sentido do relator, votou o ministro Luiz Fux, revisor da ação penal, ao frisar que o acusado tinha, efetivamente, o poder de mando para a prática do fato. “A condenação do réu é medida que se impõe quando as provas dos autos apontam para a procedência das imputações”, disse. Contudo, Fux, ao contrário do relator, não converteu a pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Segundo ele, o delito foi praticado com uma “significativa interferência na higidez física das mulheres”, tanto que duas delas depois se arrependeram no sentido de que pretendiam ter filhos. Fux classificou o crime como um “artifício extremamente danoso”, entendendo que, “exemplarmente, deve merecer a reprimenda da Corte porque ultrapassou os limites imaginários do ser humano, essa forma de corrupção eleitoral”.


Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha


A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha também acompanhou o relator pela condenação do parlamentar “Este é um caso triste do ponto de vista da cidadania porque, relativamente a essas mulheres, isso significa a falha do Estado em educação e saúde”, afirmou. Especificamente quanto aos crimes, a ministra considerou não haver dúvida em relação ao quadro fático da realização das cirurgias. No que se refere à pena imposta, no entanto, a ministra seguiu o entendimento do ministro Fux, votando pela não conversão em pena restritiva de direitos.


Ministro Marco Aurélio


O ministro Marco Aurélio abriu divergência, ao votar pela absolvição do réu. Em relação ao artigo 15 da Lei 9.263, o ministro observou que o crime previsto nesse dispositivo refere-se ao desrespeito quanto à necessidade de o corpo médico do hospital alertar a destinatária da laqueadura sobre os efeitos e aguardar o prazo de 60 dias para a realização da cirurgia. “Não se pode dizer que ele não observou o prazo entre a busca da cirurgia e a feitura da cirurgia e que também não observou a lei quanto a não se tratar de um hospital credenciado”, salientou, ressaltando não imaginar que o acusado tivesse domínio sobre tais situações. Quanto ao crime de estelionato, o ministro Marco Aurélio afirmou que não pode concordar que o acusado tinha conhecimento que o hospital, para obter o reembolso, utilizava uma fraude ao não ser credenciado para a intervenção cirúrgica. Ele ressaltou que a prática criminosa não se presume, “mas tem que ser demonstrada de forma cabal”.


Ministro Ricardo Lewandowski


O ministro Ricardo Lewandowski seguiu o voto do relator. Ele disse entender que se o STF recebeu a denúncia também por quadrilha, deve entender que estaria configurada a co-autoria nos crimes eleitoral, de estelionato e de esterilização proibida. O ministro divergiu apenas quanto à substituição da pena. Para o ministro, o artigo 43 do Código Penal só autoriza essa substituição quando não estiver presente violência ou grave ameaça. Segundo Lewandowski, as vítimas foram induzidas a erro e levadas a realizar uma esterilização sem conhecer as consequências, e acabaram sendo vitimas de lesões graves. Nesse ponto, o ministro explicou que o artigo 129 do Código preceitua que a lesão corporal pode ser considerada grave quando resulta inutilidade de membro, sentido ou função. Para Lewandowski, no caso ficou caracterizada a violência pelo resultado.


Ministro Ayres Britto


Também votou pela condenação do deputado o ministro Ayres Britto. Para ele o Ministério Público se desincumbiu bem em seu papel acusatório, comprovando devidamente a autoria dos delitos e materialidade dos delitos. Quanto à substituição da pena, o ministro Ayres Britto disse entender que a resposta penal do estado estará melhor dada no plano das finalidades da pena de castigo, de profilaxia social, da inibição de comportamentos análogos, e também de ressocialização. Para o ministro, essas finalidades estão contempladas mais adequadamente no voto do ministro Luiz Fux.


Ministro Gilmar Mendes


O ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator, exceto na parte em que ele propôs a substituição (conversão) da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos. Nesse ponto, ele votou com o ministro Luiz Fux.


Ministro Celso de Mello


O ministro Celso de Mello ressaltou ter se convencido da argumentação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, a respeito da perspectiva da “teoria do domínio do fato”, especificamente do domínio funcional do fato. “Essa teoria aplicada ao caso não torna exigível que o réu tenha se incumbido da execução pessoal, direta, da própria ação descrita no núcleo do tipo penal”, disse. Ainda de acordo com Celso de Mello, os elementos dos autos “mostram que tudo ocorreu em um contexto tipicamente eleitoral, em busca de um resultado eleitoral, ainda que em uma fase pré-eleitoral”. O ministro afirmou isso ao descartar argumentos no sentido de que o crime de corrupção eleitoral somente se aplicaria após escolhida uma determinada candidatura em convenção partidária. Ao também votar contra a conversão da pena, ele frisou que “o comportamento do réu é extremamente grave”. Para o ministro Celso, “os pressupostos legitimadores da conversão de uma pena privativa de liberdade em pena meramente restritiva de direitos não estão todos presentes (no caso)”.


Ministro Cezar Peluso


O presidente Cezar Peluso, por sua vez, ressaltou que, “tanto para os congressistas como para deputados estaduais (e distritais), a mera condenação criminal em si não implica, ainda durante a pendência dos seus efeitos, perda automática do mandato”. Segundo ele, “é preciso que se deixe ao juízo elevado do Congresso Nacional e das Câmaras e das Assembléias Legislativas examinar se aquela condenação, pela sua gravidade, é tal que se torna incompatível com o exercício do mandato parlamentar”. O presidente do STF afirmou que o que se deve fazer é comunicar a decisão do STF à mesa da Câmara dos Deputados, para que ele tome a decisão que quiser.


Fonte: Supremo Tribunal Federal

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