A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é possível a figura do crime continuado entre estupro e atentado violento ao pudor - tipos penais tratados separadamente pelo Código Penal até 2009, quando foram reunidos num mesmo artigo sob a denominação geral de estupro.
Com a decisão, o STJ passa a ter um entendimento unificado sobre o tema, pois a Sexta Turma já vinha se manifestando pela possibilidade do crime continuado - que significa que o réu é condenado à pena de um dos crimes cometidos em sequência, aumentada de um sexto a dois terços, em vez de suportar uma pena para cada crime.
O caso julgado pela Quinta Turma é o de um homem condenado em 2004 à pena de nove anos e quatro meses de reclusão pela prática de dois crimes de atentado violento ao pudor em continuidade e à pena de sete anos de reclusão por dois delitos de estupro, igualmente em continuidade, cometidos contra a mesma vítima, de 15 anos de idade, em 2002.
De acordo com o processo, o réu obrigou a vítima a sexo vaginal e a outros atos sexuais, repetindo todas as práticas pouco depois. A sentença, dada pela 5ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo (SP), reconheceu a continuidade delitiva nos crimes de estupro entre si e nos demais, mas não entre uns e outros.
Ao julgar apelação do réu, em 2006, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu a possibilidade da continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, reduzindo a pena para sete anos e seis meses de reclusão. O Ministério Público interpôs recurso especial no STJ, sustentando que, em vez da continuidade, os crimes deveriam ser considerados como tendo ocorrido em concurso material.
O concurso material é descrito no Código Penal como a situação em que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Nesse caso, diz o artigo 69, “aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido”.
Já o crime continuado está previsto no artigo 71: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
O ministro Gilson Dipp, autor do voto vencedor na Quinta Turma, observou que tanto a sentença de primeira instância quanto o julgamento da apelação ocorreram antes da mudança do Código Penal e que o TJSP adotou uma das correntes de interpretação existentes à época - quando estupro (sexo vaginal) e atentado violento ao pudor (outros atos libidinosos) eram figuras penais independentes.
Segundo tal interpretação, embora tipificados em artigos diferentes, os crimes eram da mesma espécie, razão pela qual admitiam a hipótese de continuidade. “Essa orientação tanto era representativa de uma vertente jurisprudencial razoável quanto acabou por harmonizar-se com a legislação nova que agora prestigia essa inteligência”, comentou o ministro.
Para Gilson Dipp, a Lei n. 12.015/2009 afastou a controvérsia, ao consagrar o entendimento de que os crimes são da mesma espécie. Uma nova definição de estupro foi introduzida no Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal [sexo vaginal] ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”
O TJSP, ao analisar as provas do processo de São Bernardo, concluiu que os crimes sexuais foram cometidos em circunstâncias que caracterizam a continuidade delitiva. “Se os fatos são incontroversos, o que já não pode mais ser objeto de discussão nessa instância, o acórdão local apenas adotou a tese de que os crimes são da mesma espécie e assim justificou a continuidade”, disse o ministro.
Ele salientou o fato de que o Supremo Tribunal Federal (STF), num julgamento em setembro, “mesmo afirmando a sua anterior orientação pelo reconhecimento do concurso material, em face da superveniência da lei nova passou a admitir a continuidade entre os delitos”. Dessa forma, acrescentou, “não faz sentido tanto propor o restabelecimento da orientação recentemente abandonada pelo STF quanto recusar os efeitos da aplicação da lei nova, a cuja retroatividade ninguém pode pôr reparo”.
A decisão da Quinta Turma, rejeitando o recurso do Ministério Público e assim mantendo o acórdão do TJSP, não foi unânime. Dos cinco integrantes, dois votaram pelo entendimento de que, embora do mesmo gênero, os crimes não seriam da mesma espécie, tendo modos de execução diferentes, e por isso não poderiam ser enquadrados na hipótese de crime continuado. REsp 970127
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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