quarta-feira, 7 de março de 2012

Direito penal de conduta

Qualquer visão subjetivista do Direito Penal deve ser repudiada. [1] Assim, simples desejos internos ou aspirações pessoais não legitimam uma intervenção legislativa porque o agente deve ser punido pelas condutas praticadas e não por sua pessoa, de sorte que se deve valorar um Direito Penal de conduta e não o Direito Penal de autor. [2] Em relação a este aspecto vale reproduzir trecho de doutrina: “um direito que reconheça e ao mesmo tempo respeite a autonomia moral da pessoa jamais pode apenar o ser, senão o fazer da pessoa, já que o próprio direito é uma ordem reguladora de condutas”. [3]

Em razão do princípio da ofensividade, portanto, não pode o legislador tipificar o anseio pela morte de determinada pessoa, ou seja, não poderá se inspirar em um “direito penal de vontade”. Parecendo virtual a proposição, um passo na realidade e encontra-se patente violação desta regra – ainda não verificada pelo Judiciário – no delito de obtenção de documento falso com finalidade eleitoral. [4] Trata-se de uma infração punida de forma idêntica ao crime de falsificação, embora seja intermediária a esta e ao uso de documento falso, na qual o agente obtém o documento falsificado, sem, contudo, tê-lo encomendado, e não o utiliza, não obstante ter esta intenção.

De fato, o capricho da parte do legislador ordinário acarreta uma altíssima pena ao agente que, registre-se, não é o falsificador e não faz uso do documento, ou seja, não é possuidor de habilidades para falsificar e nem tem a audácia de usar, no entanto porta o documento com uma tese subjetiva de que possa fazer uso do mesmo para fins eleitorais e por essa razão, e somente por ela, por pensar em praticar um crime, responderá com pena de reclusão de até seis anos.

Recente projeto legislativo também exemplifica o Direito Penal de autor. Há proposta de que a conduta de pedofilia praticada pelos sacerdotes seja considerada um crime hediondo. O proponente entende que por ser um religioso o agente delitivo, a conduta praticada representaria um atentado ainda mais grave. [5] Entendo que a diferença de tratamento da conduta é uma faculdade que pode ser exercida pelo togado quando da dosimetria da pena, em especial ao atender às circunstâncias em que se verificou o comportamento criminoso. Assim, não deve derivar de adjetivação prévia por parte do legislador, pois, do contrário, além de patente violação do princípio da lesividade haveria, igualmente, afronta ao princípio da isonomia. Parece-me fácil entender que o agente só deve responder pelo que faz e não pelo que representa.

Como a incriminação penal não pode basear-se em simples desejos ou aspirações pessoais, por evidente o mesmo se deve dizer em relação à penalização. É necessário que o agente exteriorize a ação, isto é, contribua para a sua decisão interna, pois se nada fizer para que o resultado se verifique, não poderá ser punido. Sem o curso externo, como um acontecer dirigido pelo conhecimento da conduta realizada, não se admite a condenação. O fim antecipado mentalmente deve ter, ao menos, um início de execução. Exemplifico.

O art. 241-B da Lei n. 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente – pune com pena de reclusão as ações de “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. [6] Sabe-se que a luta contra a pedofilia é uma constante – e é reforçada com a proposta legislativa acima narrada –, mas não deve ser realizada buscando evitar condutas inofensivas a um bem jurídico.

É normal que um casal de namorados, no qual o homem seja maior de idade e a mulher maior de catorze anos, relacione-se sexualmente. E atualmente também é uma constante que as meninas se deixam fotografar nuas a pedido do namorado e, geralmente, em fotos com colorido sexual, e depois se vejam circulando pela internet. Essa conduta, por si só, é considerada criminosa porque atinge de forma relevante a dignidade sexual da vítima. Contudo, pode suceder do namorado ser muito querido e apenas fotografar a namorada com o fim de todas as noites antes de dormir, porque mora longe e deseja ser fiel até o casamento, satisfazer a sua lascívia. Até aí nada de relevante. Mas o rapaz querido, em certo dia, ao sair da faculdade, acaba parado numa blitz policial e ao telefonar para seu pai avisando o acontecido tem seu celular apreendido, pois o policial observa a foto com colorido sexual. Com efeito, é preso. Terá cabimento a imposição de uma pena?

Ninguém pode dizer que a intenção do agente era mostrar as fotografias para os amigos ou revelá-las virtualmente, porque, assim, consagrar-se-ia o Direito Penal de autor e não um Direito Penal de ação. Poderá vir um moralista e dizer que o jovem é bastante pervertido. Isso até poderá estar correto, porém é totalmente equivocado puni-lo penalmente se os pressupostos de convivência social não foram afetados. Trata-se somente de conduta com propósito pessoal. Pode parecer jocoso, e mesmo o será, no entanto o faço para realmente aclarar o contexto: a intenção de “fazer justiça com as próprias mãos” será aplacada por meio da justiça penal. É para isso que serve o Direito penal? Sim, quando deixarem os togados de observar o princípio da ofensividade ou lesividade.
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[1] DOLCINI, Emilio; MARINUCCI, Giorgio. Corso di Diritto Penale Italiano. 3ª ed. Milano: Giuffrè, 2006. Há tradução ao português: “Constituição e a escolha dos bens jurídicos”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 4. Trad. José de Faria Costa. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.

[2] Sobre a culpabilidade por condução de vida, veja-se, a respeito: MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. 3ª ed. Trad. Quintano Ripollés. Madrid, 1957.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: RT, 2006.

[4] BEM, Leonardo Schmitt; CUNHA, Mariana Garcia. Direito Penal Eleitoral. Análise Constitucional dos Delitos. Comentários à Lei da Ficha Limpa. 2ª ed. Florianópolis: Conceito, 2011.

[5] Projeto de lei n. 7099/2010 do deputado Eduardo Cunha, PMDB do Rio de Janeiro.

[6] Em norma explicativa prevista na mesma legislação, “para efeitos dos crimes desta lei, a expressão cena de sexo explícito ou pornográfico compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou com exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais” (art. 241-E).

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