quinta-feira, 8 de março de 2012

Delito de embriaguez ao voltante

Quero chamar atenção de meus poucos leitores para uma questão que há tempo me perturba e que aqui penso ser apropriado – não obstante estar receoso da melhor nomenclatura – denominar de inércia contra argumentativa. Quiçá com alguns exemplos (aqui vou me valer do delito de embriaguez ao volante, art. 306 da Lei n. 11.705/08) seja mais fácil esclarecer o que pretendo dizer com base na expressão.

No HC n. 155.069/RS a Ministra Laurita Vaz, citando outro precedente e sem tecer uma linha de consideração própria, entendeu que o art. 306 do Código de Trânsito é um delito de perigo abstrato. Alguns meses depois, no julgamento do HC n. 158.311/RS acompanhou o Ministro Gilson Dipp que apresentou entendimento de se tratar de delito de perigo concreto. Mais recentemente, no julgado do HC n. 175.385/MG voltou a defender a primeira tese (delito de perigo abstrato) em dois parágrafos de sua própria produção.

Outro exemplo, dentro desse mesmo contexto, é o do Ministro Jorge Mussi. Em abril do ano passado ele acompanhou a Min. Laurita Vaz no julgamento do HC n. 155.069/RS que perfilhou tratar-se de delito de perigo abstrato. Em setembro votou na esteira do Min. Gilson Dipp no HC n. 158.311/RS que, contrariamente, como já destaquei, perfilhou se tratar de delito de perigo concreto. O mais interessante é que silenciou na apresentação de argumentos contrários a esse entendimento, ainda mais quando meses antes, em julgado de sua relatoria, no RHC n. 26.710/DF, defendeu que o art. 306 do Código de Trânsito se deve incluir entre os delitos de perigo abstrato.

Quando no acórdão de própria relatoria procura-se, por imperativo constitucional, demonstrar as razões de decidir (por vezes isso é feito com um texto padrão ou somente se valendo de outro precedente). Quando em sessão de julgamento, pouco importa se a fundamentação do outro julgador é contrária a tese pessoalmente defendida, pois será suficiente concordar quanto ao dispositivo da decisão, lavando-se as mãos para as possíveis contrariedades ao modo pessoal de decidir. É isso que os exemplos por mim destacados demonstram. Parece simples concordar com o dispositivo da decisão (indeferimento da ordem de habeas) e não se comprometer necessariamente com a tese. Logo, pergunto: estou certo em chamar tais atuações de inércia contra argumentativa?

Mas há mais relacionado com o presente delito que me deixa absolutamente intranquilo. Destacarei a técnica do Ctrl c + Ctrl v adotada pelos nossos tribunais como exemplo de escolha não muito apropriada. Quem seguir entenderá.

Exemplo 1: Em precedente da Corte de Justiça de Santa Catarina, a relatora iniciou seu voto destacando implicitamente tratar a embriaguez ao volante de um delito de perigo abstrato. Acompanhe: “[...] Como característica prejudicial ao réu, a nova redação passou a exigir, como comprovação do crime de embriaguez ao volante, não mais que o agente exponha a dano potencial a incolumidade de outrem, bastando, para tanto, que conduza veículo automotor, na via pública, com concentração alcoólica por litro de sangue igual ou superior a 0,6 (seis decigramas) [...]. Dessa forma, não mais desponta como requisito essencial a direção ou a exposição de outros ao risco causado pela direção de condutor fisicamente ou psicologicamente alterado pelo uso de substâncias alcoólicas ou entorpecentes, perfectibilizando-se o delito somente com a mera conduta de dirigir embriagado, com concentração aferida por meio do aparelho de dosagem alcoólica [...]” (TJSC, 2ª C. Crim. Apelação criminal n. 2009.026222-9, relª. Des. Salete Silva Sommariva, DJ 30/11/2009 – grifos pessoais).

Ocorre que em outra parte da decisão, quando desclassificou o delito de embriaguez ao volante para a contravenção de direção perigosa prevista no art. 34 do Decreto-lei n. 3.688/41 por meio da aplicação do instituto da emendatio libelli, a relatora salientou que o delito da Lei de Trânsito é de perigo concreto. Textualmente: “[...] poder-se-ia pressupor que o crime definido no art. 306, revogou, ainda que parcial e implicitamente, a contravenção penal (art. 34), por se tratar da mesma matéria. Entretanto, vale frisar que não há falar-se, no caso, em revogação, uma vez que, além de aludido crime tratar-se de normal especial e a contravenção penal de norma de caráter geral, os institutos cuidam de bem jurídicos diversos, vale dizer, aquele, em seu art. 306, é considerado de perigo concreto enquanto esta, no art. 34, é reputada como de perigo abstrato. [...]”.

A confusão é tamanha ou a ausência de uniformidade é tanta que, ao final da decisão, não se alcança uma conclusão. Mas o pior ainda está por vir. Refiro-me à técnica do Ctrl c + Ctrt v. Para fundamentar a análise de que o art. 306 do Código de Trânsito é delito de perigo concreto, destacou precedente do Superior Tribunal de Justiça que “também consolidou o entendimento de que o crime de embriaguez ao volante (art. 306) é considerado delito de perigo concreto (STJ, Recurso especial n. 515.526/SP, rel. Min. Felix Fischer, j. 02/12/2003)”. E onde está o engano pela escolha e aplicação da técnica cibernética? Bem, é suficiente passar os olhos no ano da decisão remetida e comparar com o ano da decisão relatada. Aquela se refere a um entendimento que era pacífico antes da reforma legislativa operada no CTB em junho de 2008; ocorre que, com a alteração, aquele enunciado perdeu sentido.

Exemplo 2: Do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro retira-se que no voto vencido de julgamento de ordem de habeas corpus, a magistrada entendeu que a infração de embriaguez ao volante se caracteriza pela exigência de perigo abstrato e não de perigo concreto (como perfilhou a maioria dos julgadores). Destaco a fundamentação: “[...] conseqüência lógica é que para a caracterização da conduta típica não é necessário (nem a norma do art. 306 do CTB exige) que o motorista esteja dirigindo de forma anormal, avançando sinais de trânsito, zigue zague e em direção perigosa. Basta ter ingerido bebida alcoólica acima do mínimo legal permitido e incorrerá em crime. [...] Francamente equivocado o entendimento de alguns julgadores, segundo o qual mister seja demonstrado o perigo concreto para que se possa falar em conduta típica. […]”. (TJRJ, 4ª C. Crim., Habeas corpus n. 0026350-74.2010.8.19.0000, rel. do voto vencido Desª. Gizelda Leitão Teixeira, j. 05/08/2010).

O discurso de revolta (leiam a fundamentação do voto para alcançar uma idêntica conclusão) deveria ser mais controlado, pois ela acaba por arrolar em seu voto decisão contrária à pretensão de ver configurada um delito de perigo abstrato. A togada enfatiza textualmente que acompanha integralmente os seguintes julgados, entre eles um que a contradiz, ou seja, um acórdão que afirma ser a embriaguez ao volante uma infração delito de perigo concreto. Ou seja, a técnica do Ctrj c + Ctrl v é novamente usada para enforcar. Vejamos:

“Recurso em sentido estrito. Rejeição da denúncia. Recorrido denunciado por suposta ao art. 306 da Lei n. 9.503/97. […] No mérito assiste razão ao recorrente. Da análise do art. 306 depreende-se que para imputar ao motorista esse tipo penal é necessário que se conjugue o elemento objetivo consistente na concentração de pelo menos 6 decigramas de álcool por litro de sangue, e o elemento subjetivo constatado pelo comportamento anormal do motorista na direção do veículo […] Por sua vez, o elemento subjetivo do tipo previsto no art. 306 do CTB é aferido pelo comportamento anormal do motorista na direção do veículo. De acordo com os documentos adunados às fls. 02-D/31, o recorrido conduzia o veículo automotor de modo anormal, em alta velocidade no acostamento. O conjunto probatório aponta que há justa causa para a deflagração da ação penal. Recurso ministerial provido para reformar a decisão, receber a denúncia e determinar o prosseguimento da ação penal” (TJRJ, 7ª C. Crim., Recurso criminal n. 0049376-55.2008.8.190038 (2009.05100686), rel. Desª. Márcia Perrini Bodart, j. 02/03/2010 – grifos pessoais).

Exemplo 3: Agora no Superior Tribunal de Justiça a técnica cibernética do Ctrl c + Ctrl v falha. O Desembargador convocado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi, em um julgado declarou que é desnecessária a demonstração da efetiva potencialmente lesiva da conduta do motorista embriagado, ou seja, diz se tratar de delito de perigo abstrato. Aqui: “A Lei n. 11.705/08 deu nova redação ao caput do art. 306 do Código de Trânsito brasileiro e deixou de exigir a ocorrência de perigo concreto. O legislador passou a entender que conduzir veículo na via pública nas condições do art. 306, caput, é uma conduta que, por si, independentemente de outro acontecimento, gera suficiente perigo ao bem jurídico tutelado, de molde a justificar a imposição de pena criminal” (6ª Turma, Habeas corpus n. 177.942/RS, rel. Celso Limongi, DJe 14/03/2001).

Ocorre que, depois, destaca outra decisão da Corte Superior – que invoca ser no mesmo sentido de seu relato, inclusive com destaque negrito – mas que é absolutamente contrária ao que ele decide. Trata-se do Habeas corpus n. 153.311/RS, rel. Min. Gilson Dipp, aqui já citado, e que destaca tratar-se à infração de um delito de perigo concreto. Aos seguidores de São Tomé, realço mais claro que a luz: “[...] Criminal. Habeas corpus. Embriaguez ao volante. Art. 306 do Código de Trânsito brasileiro. Delito de perigo concreto de dano. Realização de exame bafômetro. Prescindibilidade de exame pericial específico. Ordem denegada. I. O crime de embriaguez ao volante é delito de perigo concreto indeterminado, e não de perigo abstrato. Não basta o ato de dirigir embriagado, devendo haver comprovação de que a conduta se revelou perigosa para terceiros, mesmo que considerados indeterminadamente. Ausente o dano potencial à coletividade, o fato será atípico penalmente, apenas, subsistindo, a responsabilidade administrativa, para a qual o perigo abstrato. Faz-se necessária a comprovação da existência de potencialidade lesiva concreta […]” (STJ, 5ª Turma, Habeas corpus n. 153.311/RS, rel. Min. Gilson Dipp, DJe 18/10/2010 – grifos pessoais).

Em síntese, não há qualquer preocupação na escolha de julgados a fim de justificar a tese que foi eleita. Simplesmente abre-se a ferramenta de busca do respectivo tribunal, elegem-se as palavras chaves e o resultado é copiado e colado. Puro Ctrl c + Ctrl v. Nem uma simples leitura de revisão é realizada. Não há a mínima cautela em analisar a contradição entre o que decidiu (tratar-se de delito abstrato) com o precedente citado (que diz ser delito de perigo concreto). Como deveria chamar essa técnica? Deixo ao critério dos leitores.

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